segunda-feira, 26 de março de 2012

Essential Killing (Jerzy Skolimowski, 2010)


Skolimowski é um dos maiores paradoxos do cinema mundial. Nascido na Polónia pouco antes da invasão nazi do país, haveria de ficar com cenários de destruição e situações de guerra como maiores recordações de infância. Apesar disso, ao longo da sua carreira parece ter-se sempre afastado propositadamente de assuntos históricos e concentrado em pequenas histórias de alienados e forasteiros. Longe do cinema durante 17 anos, concentrou-se na pintura, como que nunca conseguindo suprimir os seus impulsos artísticos, até voltar em 2008 ao grande ecrã com Four Night With Anna, um filme delicadíssimo e transgressivo, a que se seguiu este Essential Killing.

Um terrorista sem nome, numa terra irreconhecível, mata 3 americanos à bazucada num desfiladeiro. É perseguido por um helicóptero, donde jorra um míssil e soldados suficientes para o capturar. Metodicamente e com frieza, o filme mostra o que acontece à personagem interpretada de forma intensa por Vincent Gallo, um ator de olhos grandes e gentis, que se entrega de corpo e alma a representar um árabe que combate com a promessa de um lugar no céu na cabeça e que reage ao medo com violência, como um animal assustado e não como um crente extremista. É acima de tudo esta constatação que nos leva a interessar pelo seu destino, apesar da ideia formatada que talvez tenhamos da sua vileza.

O filme começa logo por triunfar ao virar as cartas do avesso e pôr o espectador do outro lado. Não que seja claro quais os propósitos ou ideais do homem, se é um taliban, se é um civil, se é um ocidental tipo John Walker Lindh, mas é claro que segue o Corão e que se opõe à presença militar estrangeira no seu país, seja ele qual for. Ao oferecer uma perspectiva diferente da que nos é mais afeta, mas despindo-a de posições políticas, Skolimowski realça a contemporaneidade do filme e a ambiguidade de qualquer conflito armado, pede para nos focarmos apenas na sua lógica circular de ação/reação e no processo pessoal de sobrevivência de quem fica envolvido.

Enviado para um black site algures na Europa, é vestido com um uniforme laranja e torturado. Constantemente em trânsito, a carrinha que o transporta uma noite, através duma região inóspita, sofre um acidente, cai numa ribanceira e ele consegue fugir. Na neve, pelo meio duma floresta enorme, longe do deserto por onde se movia no início, a personagem principal é obrigada a focar-se no essencial e a dar resposta às necessidades mais básicas. Um estranho numa terra estranha... Talvez como se sentem os soldados americanos destacados para o Iraque e Afeganistão? Afinal, porque razões e com que convicções vai alguém parar às fileiras de uma guerra? Nem sempre é preto no branco.

É de notar a natureza abstrata do filme e que facilmente responde ao questionável abandono do local do despiste pelos seus captores antes de se iniciar uma caça ao homem, à elevada densidade populacional de Border Collies com treino de procura e salvamento ou às constantes visões do terrorista. Não é difícil antever uma divisão dos espectadores a partir deste ponto: a fuga e sobrevivência de Vincent Gallo são, na realidade, deixadas em aberto, e o que resta é uma sensação de desconforto, que se estende até ao final. Sem sensacionalismos, o realizador opta por uma abordagem de tese: quinze minutos de enredo, uma hora de discussão, em que cada um pode ajuizar a justiça que se impõe.

Essential Killing é um ensaio impressionista filmado com uma audácia desconcertante. Atos bizarros sucedem-se no silêncio do inverno e são capturados através da câmara atenta e móvel de Skolimowski, sem descuidar a envolvente e o enquadramento, que são sempre perfeitos e que fazem de cada frame um verdadeiro quadro vivo com som (e que bela montagem). Este é provavelmente o mais enigmático e menos polarizante anti-herói da filmografia do polaco, mas que nos lembra, com a mesma força que o estudante inconformista que acaba por entrar nas forças armadas em Rysopis, como podemos ser, em simultâneo, relutantes e complacentes com algo de que duvidamos...

9/10

7 comentários:

  1. Fiquei bastante dividido acerca deste filme, o qual não me arrebatou por muito pouco.

    É um bom filme mas tem pormenores que não consegui encaixar: a interessante premissa está recheada de sequências desnecessárias; possui uma notável fotografia que, por vezes, revela-se aparato a mais; Gallo está irrepreensível mas constituiu surpresa ver a Emmanuelle Seigner num papel tão insípido...

    Vence mas não me convence :)

    Cumps cinéfilos.

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  2. Percebo, mas discordo, todos os pormenores são interessantes e enriquecem o filme. Tenho um bocado esta sensação com o Apocalypse Now também, parece-me que são filmes que podiam durar centenas de horas, o Vincent Gallo a fugir, o Martin Sheen a subir o rio, podiam nunca acabar, são filmes com esse efeito mágico. Por isso sou grande defensor do Apocalypse Now Redux :P

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  3. Um grande diretor. Estou ansioso para assistir esse filme.

    O Falcão Maltês

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  4. Não é particularmente acessível, mas vale muito a pena! Abraço

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  5. Nao conhecia o filme e fiquei com muita vontade de o ver após a tua critica.

    1 abraço

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  6. Gostei do filme e da interpretação do Vincent Gallo, o que não me surpreendeu, dado o meu gosto pela restante filmografia do Skolimowski. A guerra que ele representa nesta filme pode não ser a mesma que viveu enquanto criança, mas é-lhe cara na mesma, não fosse ele sensível a presenças militares estrangeiras em países que não as querem lá. O resultado final é um curioso exercício de cinema, embora não seja particularmente acessível.

    Cumprimentos :)

    http://matinee-portuense.blogspot.pt

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  7. Conhecendo o realizador, percebe-se o alcance da sua compreensão do assunto, apesar de não ser um filme pessoal. Numa guerra, rapidamente se perde a noção de quem está certo, quem está errado, quem agride, quem é agredido. É talvez a melhor interpretação do Vincent Gallo :)

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