domingo, 14 de junho de 2015

The Cruise (Bennett Miller, 1998)

Em 1998 tive a felicidade de visitar Nova Iorque por um dia. Sublinho a palavra felicidade, pois não fazia parte do plano. Depois de uma semana de sonho na Flórida a explorar parques de diversões do tamanho de cidades e a atravessar pântanos de carro a ir e vir da costa, o que incluía o ocasional cruzamento com dezenas de alligators, chegou a hora de voltar a terras lusitanas. Por sorte ou azar, uma tempestade na Big Apple permitiu-nos aterrar no aeroporto de Newark, mas não a saída quase imediata para o outro lado do Atlântico, transformando uma escala de um par de horas numa permanência forçada para aí de 15 pares de horas. Com tanto tempo livre, como desperdiçar o acaso num terminal de aeroporto?

O trânsito caótico em direcção ao Lincoln Tunnel obrigou a algum desperdício de tempo, mas a satisfação de chegar à superfície e ter vislumbres dos prédios em tijolo burro perfeitamente alinhados numa imensa teia de ruas paralelas e dos arranha-céus, que me lembro de admirar num livro publicado pela Edinter sobre superestruturas desde que tenho memória, foi indescritível. À minha frente tive o Chrysler Building, o Empire State Building, o Madison Square Garden, o Flatiron Building, o World Trade Center, entre outros. Foi como conhecer alguém famoso e admirar-lhes a altura e o estilo, sem interacções desconfortáveis. Se não tivesse fotografias para comprovar, diria que tinha sonhado essas memórias do século passado.

De forma análoga, The Cruise torna a cidade tão palpável que quase se pode cheirar o asfalto e os cachorros quentes. Pergunto-me se terei passado pela verdadeira personagem que este documentário dá a descobrir. Timothy Levitch era, afinal, um guia de autocarro turístico. Quem sabe. Claro que não estamos a falar de um guia qualquer, mas sim de um poeta urbano que conhece todos os cantos da metrópole em que habita e que é o seu grande amor. “They're writing songs of love, but not for me / A lucky star's above, but not for me / With love to lead the way, I've found more clouds of gray than any Russian play can guarantee / La la la la / Although I can't dismiss the memory of her kiss / I guess she's not - she's not for me. ” Letra de George Gershwin, que viveu a dois quarteirões de distância. “Welcome to New York City.”

A carreira da GrayLine passa por Chinatown, Soho, Wall Street ou Central Park; tantos lugares que constroem a mística da ilha de Manhattan e sobre os quais Levitch improvisa longas e filosóficas elegias em cada círculo percorrido de microfone na mão com turistas de todo o mundo no andar de cima descapotável do autocarro. A excentricidade da sua trunfa gadelhuda, da eloquência das suas palavras e dos seus trejeitos tergiversantes contrastam com o minimalismo da sua existência, que passa por caminhadas solitárias sobre a Brooklyn Bridge, cravar residência junto de amigos e alternar um blazer horrível com outro cujo forro está roto. Uma figura colorida, uma vida a preto-e-branco.

É nesses tons que Bennett Miller filma e dificilmente as silhuetas das construções e a luz que as suas fachadas de vidro, pedra ou terracota reflectem podiam adquirir maior intemporalidade. Ao nível do início de Gentleman’s Agreement ou Manhattan. O realizador tem-se notabilizado pelas biografias de homens dedicados de corpo e alma a uma actividade específica, mais interessado no seu mindset do que em character development. Curiosamente, sem os artifícios da ficcionalização e orçamentos de milhões, a vivacidade é incomparavelmente superior. Tenho receio que os EUA tenham perdido esta espontaneidade e inocência com o 11 de Setembro, dilema inevitável quando chega a sequência final. Só lá indo… ou voltando. E voltando. E voltando…

9/10

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