Em 1998 tive a felicidade de
visitar Nova Iorque por um dia. Sublinho a palavra felicidade, pois não fazia
parte do plano. Depois de uma semana de sonho na Flórida a explorar parques de
diversões do tamanho de cidades e a atravessar pântanos de carro a ir e vir da
costa, o que incluía o ocasional cruzamento com dezenas de alligators, chegou a
hora de voltar a terras lusitanas. Por sorte ou azar, uma tempestade na Big
Apple permitiu-nos aterrar no aeroporto de Newark, mas não a saída quase
imediata para o outro lado do Atlântico, transformando uma escala de um par de
horas numa permanência forçada para aí de 15 pares de horas. Com tanto tempo
livre, como desperdiçar o acaso num terminal de aeroporto?
O trânsito caótico em direcção ao
Lincoln Tunnel obrigou a algum desperdício de tempo, mas a satisfação de chegar
à superfície e ter vislumbres dos prédios em tijolo burro perfeitamente
alinhados numa imensa teia de ruas paralelas e dos arranha-céus, que me lembro
de admirar num livro publicado pela Edinter sobre superestruturas desde que
tenho memória, foi indescritível. À minha frente tive o Chrysler Building, o Empire State Building, o
Madison Square Garden, o Flatiron Building, o World Trade Center, entre outros.
Foi como conhecer alguém famoso e admirar-lhes a altura e o estilo, sem
interacções desconfortáveis. Se não tivesse fotografias para comprovar, diria
que tinha sonhado essas memórias do século passado.
De forma análoga, The Cruise
torna a cidade tão palpável que quase se pode cheirar o asfalto e os cachorros quentes. Pergunto-me se terei passado pela
verdadeira personagem que este documentário dá a descobrir. Timothy Levitch
era, afinal, um guia de autocarro turístico. Quem sabe. Claro que não estamos a
falar de um guia qualquer, mas sim de um poeta urbano que conhece todos os
cantos da metrópole em que habita e que é o seu grande amor. “They're writing songs of love, but not for me
/ A lucky star's above, but not for me / With love to lead the way, I've found
more clouds of gray than any Russian play can guarantee / La la la la / Although
I can't dismiss the memory of her kiss / I guess she's not - she's not for me.
” Letra de George Gershwin, que viveu a dois quarteirões de distância.
“Welcome to New York City.”
A carreira da GrayLine passa por
Chinatown, Soho, Wall Street ou Central Park; tantos lugares que constroem a
mística da ilha de Manhattan e sobre os quais Levitch improvisa longas e filosóficas elegias
em cada círculo percorrido de microfone na mão com turistas de todo o mundo no
andar de cima descapotável do autocarro. A excentricidade da sua trunfa
gadelhuda, da eloquência das suas palavras e dos seus trejeitos tergiversantes
contrastam com o minimalismo da sua existência, que passa por caminhadas
solitárias sobre a Brooklyn Bridge, cravar residência junto de amigos e
alternar um blazer horrível com outro cujo forro está roto. Uma figura
colorida, uma vida a preto-e-branco.
É nesses tons que Bennett Miller
filma e dificilmente as silhuetas das construções e a luz que as suas fachadas
de vidro, pedra ou terracota reflectem podiam adquirir maior intemporalidade.
Ao nível do início de Gentleman’s Agreement ou Manhattan. O realizador tem-se
notabilizado pelas biografias de homens dedicados de corpo e alma a uma
actividade específica, mais interessado no seu mindset do que em character
development. Curiosamente, sem os artifícios da ficcionalização e orçamentos de
milhões, a vivacidade é incomparavelmente superior. Tenho receio que os EUA
tenham perdido esta espontaneidade e inocência com o 11 de Setembro, dilema
inevitável quando chega a sequência final. Só lá indo… ou voltando. E voltando.
E voltando…
9/10
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