sábado, 31 de outubro de 2015

Repulsion (Roman Polanski, 1965)

Incluído numa trilogia informal sobre terror urbano e mistérios em habitações citadinas, juntamente com Rosemary's Baby e Le Locataire, todos eles assentando numa proximidade doentia às suas personagens principais que envolve o espetador na espiral de insanidade que estas deixam agigantar-se, Repulsion foi o primeiro filme falado em inglês rodado por Roman Polanski e tem Londres como cenário. Catherine Deneuve é Carole, funcionária de um salão de beleza, onde apenas tem companhia feminina – ouve histórias sobre comportamentos inapropriados de homens todo o dia, almoça preferencialmente sozinha e passa o resto do tempo em casa, onde vive com a irmã Hélène (uma mulher com uma vida sexual muito ativa). As banalidades do dia-a-dia chateiam-na, mas não as consegue evitar.

Quando Hélène decide ausentar-se para umas férias em Itália com o amante atual, Carole terá de ficar sozinha. Pressentindo o perigo que isso representa, ela pede à irmã para não ir, mas não se consegue exprimir convenientemente, nem a dimensão do que se seguirá poderia ser totalmente prevista. À noite, o desmoronar da sua sanidade manifesta-se gradualmente através de visões de desmoronamento do seu próprio apartamento. Raios de luz ameaçadores penetram pelas janelas, as divisões parecem mudar de dimensões e as paredes racham ameaçadoramente. Polanski enche o ecrã com imagens perturbadoras, projetadas maioritariamente com o silêncio ensurdecedor do isolamento em examinação. Carole reprime-se e afasta-se constantemente do contacto dos outros, em especial de homens. Claro que não é por isso que os seus desejos esmorecem e acaba por os povoar com elementos negativos, de escuridão, de violência, de violação, que reforçam o seu afastamento físico e mental de quem quer a sua companhia, mesmo que as suas intenções sejam sinceras, como é o caso de Colin (John Fraser), que se cruza com ela casualmente e não a consegue esquecer.

O apartamento parece uma pocilga, Carole falta ao trabalho e Colin decide procurá-la. Ansioso por a ver, berra, força a entrada, parte a porta, e, envergonhado com tamanha excitação, começa a verbalizar o amor que sente. Contudo, para Carole tal demonstração de irracionalidade, a transbordar de testosterona (como Robin Williams disse uma vez “o problema é que Deus deu ao homem duas cabeças e só sangue suficiente para usar uma de cada vez”), é pretexto para a catarse de todos os seus sentimentos conflituosos. Sem ela emitir um som ou mudar a expressão facial, depois de uma confissão de quebrar corações, Polanski desconstrói as pieguices dos romances de Hollywood, que a uma cena destas concederiam no mínimo uma beijoca, e faz a loira desprotegida de camisa de noite pegar num candelabro e rebentar com o crânio do rapaz. A partir daí já não há volta a dar. As convenções do mundo normal estão do lado de fora destas paredes, a câmara permanece do lado de dentro e o filme transforma-se num inferno a preto-e-branco.

A aparente displicência com que Deneuve se passarinha por Kensington de início é um chamariz para a atenção masculina. A atriz espicaça a curiosidade com a inocência aparente que muitos homens acham curiosa e desejam conspurcar. Quando começarem a pensar que a história se está a tornar aborrecida e o que vale é ter um bom corpo em todas as cenas, é quando foram apanhados na sua teia. Nessa altura, Polanski leva-nos para o quarto, para a cama e, eventualmente, para a mente de Carole. Fomos tão longe e estamos tão perto que, quando nos apercebemos da sua natureza psicótica, já não conseguimos fugir. Agarrou-nos, e vai rebentar a nossa cabecinha também, enquanto nos vai deixando ver o que se passa na sua. Espera, esperamos, que algo aconteça, que se suicide, que a polícia a prenda, que um trovão caia no prédio e tudo acabe. Polanski interrompe a loucura abruptamente, quando as alucinações se haviam já tornado inseparáveis da realidade, com um simples zoom como ponto final, que nada resolve, pouco revela, mas, de forma dissimulada, parece responder pela origem de tão enigmática personalidade.

Algo que sempre me impressionou muito em Repulsion é a gestão desse silêncio da solidão, que apenas os mestres decidem e conseguem tornar num veículo de enredo no cinema. Muito à semelhança do trabalho de, por exemplo, Ingmar Bergman (que, apropriadamente, tem um grande trabalho intitulado apenas Silêncio), Polanski aponta a câmara, põe os atores nos seus lugares e deixa que o movimento combinado de todos os elementos transmita a essência de cada sequência. A fluidez da imagem, a fotografia perfeita, os takes longos e os ângulos invulgares, elevam este filme a um patamar de excelência e inovação técnica que é único nos anos 60.

9/10

domingo, 18 de outubro de 2015

Crisis (Ingmar Bergman, 1946)

Ah, Ingmar Bergman… O expoente máximo do cinema intelectual e o mais aborrecido dos autores concentrados na mesma pessoa, se considerarmos as opiniões dos seus admiradores e detratores lado a lado. Em nome da objectividade, talvez devesse moderar estas divergências e caminhar para um meio termo, mas sinceramente, o sueco realizou 40 filmes ao longo de 38 anos, todos eles, independentemente do género e da idade, com uma ímpar compreensão das relações humanas em todas as vertentes possíveis e imaginárias, por isso confesso a minha dificuldade em aceitar qualquer menosprezo que lhe seja dirigido.

Crisis é a antecâmara dos conflitos pessoais, das interpretações com apontamentos teatrais e dos tons escuros regulados pela mais perfeita iluminação que são transversais a Summer With Monika, Through A Glass Darkly ou Face To Face, mesmo depois da passagem para a policromia. Primeiro cenário: uma vila pacata no interior do país, onde mora Ingeborg, uma mulher estéril e solteira, com Nelly, a filha adoptada de 18 anos que é a sua razão de viver. Certo dia, chega Jessie, a mãe biológica, surpreendentemente equilibrada e disposta a reconstruir uma espécie de família a três na grande cidade, junto ao namorado actor, Jack.

Já nesta estreia é admirável a compreensão crescente que se vai tendo da psicologia de cada personagem, da preocupação de Ingeborg em manter Nelly por perto enquanto esconde a deterioração da sua saúde, das ilusões e desilusões próprias da juventude da rapariga ou da vacuidade letal que Jack cultiva, no fundo do estado de espírito e das amarras que os (as) prendem a todos(as). Bergman tece uma rede de intenções, mal-entendidos, desejos e frustrações com um detalhe notável. Estas pessoas no ecrã têm vida, a eloquência do argumento e o controlo da mise-en-scène, ainda maiores nas décadas seguintes, clarificam e amplificam o nosso apego às suas histórias.

Quanto a problemas específicos da menor maturidade evidente em Crisis contam-se alguns: a narração é dispensável, dá-se relevo ao isolamento da vila ser apenas contrariado pelo autocarro que lá passa diariamente, no entanto as viagens que vão surgindo fazem-se por via férrea e Ulf parece demasiado velho e dessintonizado da vivacidade de Nelly para se assumir como o par adequado. Não é o filme mais evoluído a nível visual, o que não impede o baile de caridade e a noite no salão de ficarem na memória. Nem o amor nem o desprezo por Bergman passam por aqui; este é um pequeno e adorável primeiro filme, mas o início de tanto mais.

8/10

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O Tempo de Coppola

Exprimir uma noção temporal numa forma de arte talvez nunca tenha sido tão desafiante como é no cinema, porque é possível capturar a sua passagem através de movimento visível. Vários realizadores e críticos dedicaram extensas porções dos seus trabalhos a esmiuçar a temporalidade. Andrei Tarkovsky escreveu que “a principal motivação do cinéfilo é a procura do tempo: do tempo perdido, do tempo negligenciado, do tempo a reencontrar.” Se é verdade que cada indivíduo tem a sua própria sensibilidade no que respeita a esta dimensão, torna-se uma luta estabelecer um compromisso entre o inter-relacionamento de momentos e um ritmo que os sirva, cativando a atenção do maior número de pessoas possível.

Francis Ford Coppola tem, com subtil consistência, tentado oferecer significado à narrativa cinemática através da exploração da passagem do tempo como é compreendida em diferentes momentos da vida, para além de adaptar o seu estilo visual para encontrar o tom correto de cada história. Os seus filmes são regularmente sínteses de preocupações relacionadas com a idade. Recorrendo a uma linearidade precisa, propõe-nos constantemente para análise frases, estados de espírito e memórias que, uma e outra vez, ressoam no passado ou no futuro das personagens (que estão sempre condenadas a uma contemporaneidade específica). Coppola privilegia um trabalho de câmara estático e usa o espaço e a montagem de forma a criar a ilusão de comprimir ou esticar o tempo para adicionar suspense. Cada momento vale por si, nunca é um movimento de transição entre atos, mas um presente com implicações e expectativas.

Em The Godfather, o realizador explorou essa linearidade temporal em várias ocasiões com ações simultâneas, mostradas em paralelo e não em sucessão, definindo, no primeiro capítulo, os dilemas morais de Michael e a dualidade dos conceitos de família que herda e que obrigam ao batizado da filha e à manutenção de estatuto através de homicídios em cadeia (“do you renounce Satan?”), ou, no segundo capítulo, as dissemelhanças entre pai e filho, com a mesma idade, a viver em épocas distintas, implicando uma circularidade de estatuto e uma descontinuidade de decisões na estrutura. Em Jack, o tempo adquire duas dimensões em si mesmo à medida que o enredo evolui numa cronologia normal e Robin Williams envelhece quatro vezes mais rápido. Dracula não é mais do que um amor repetido ad eternum por um imortal. Com Youth Without Youth, explorou uma personagem que se torna mais nova inexplicavelmente e pode, com isso, continuar o seu trabalho, que o leva a civilizações cada vez mais antigas, até à origem da linguagem.

Os caprichos do tempo e as técnicas cinemáticas nunca deixaram de estar em questão na carreira de Coppola, o que faz dele um dos mais genuínos intelectuais do cinema. O seu propósito não é um total realismo, nem uma fragmentação altamente estilizada, simplesmente a gestão impercetível do âmago emocional de cada cena para ficarem como que suspensas no tempo. Ao manipular a mise-en-scène e a pós-produção, ao acentuar estas obsessões com personagens conscientes da brevidade ou da infinidade das suas vidas, eleva a nossa perceção da passagem do tempo a um patamar comum, onde somos confrontados com o valor do presente.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

El Orfanato (Juan Antonio Bayona, 2007)

Uma das fitas mais faladas da edição de 2008 do Fantasporto, El Orfanato tem o mérito de cumprir com aquilo a que se propõe: cativar a atenção do início ao fim, envolvendo quem o vê num mistério com contornos muito pessoais para a personagem principal. Apesar do nome de Guillermo Del Toro aparecer nos créditos iniciais, a sua contribuição resume-se ao trabalho de produção, estando a realização a cargo de Juan Antonio Bayona, na altura um singelo caloiro espanhol, agora talvez mais conhecido por ter o drama The Impossible (2012) no currículo.

Pela sinopse – para quem está a zero sobre a história, centra-se numa mulher que compra o orfanato onde passou a sua infância, muda-se para lá com a família, e acaba por desenterrar segredos do passado, ao mesmo tempo que o seu filho desaparece – talvez fique a sensação de que se está a pisar terras já exploradas; The Haunting (Robert Wise, 1963), The Others (Alejandro Amenábar, 2001), e, para quem se lembrar, Saint Ange (Pascal Laugier, 2004), podem saltar à memória, mas garanto que nem por isso El Orfanato é uma experiência menos aprazível ou surpreendente.

Todos os desenvolvimentos do presente de Laura são um reflexo de várias fases da sua vida, pelo que, mais do que um puzzle em resolução, com meia dúzia de sustos pelo meio, o enredo evoca memórias difíceis e constrói uma espiral de degradação psicológica desta mulher, cabendo ao espetador tentar perceber se isso é irreversível ou não e até que ponto esse estado alimenta a sua imaginação. Belén Rueda, cara conhecida de Mar Adentro (Alejandro Amenábar, 2004), consegue exprimir a fragilidade de Laura de forma convincente e carrega a ação de forma admirável.

Nota-se muito cuidado em fundir toques modernos com uma história mais tradicional, vê-se o aparecimento de assistentes sociais, sabemos que uma criança tem VIH e, por outro lado, temos aquele toque gótico característico de narrativas que revolvem em casas antigas e enormes. Não há muito gore, mas há um nervosismo miudinho constante, por vezes quase impercetível, que dá grande atmosfera. Há classe, que é algo que falta no terror que é feito hoje em dia e que é tão apreciado nos clássicos de Roman Polanski, em The Omen (Richard Donner, 1976) ou Don't Look Now (Nicolas Roeg, 1973). A banda sonora é apropriada e memorável. Tudo somado, uma boa surpresa, que faz da sobriedade, pormenor e ambiguidade as suas palavras-chave.

8/10