Incluído numa
trilogia informal sobre terror urbano e mistérios em habitações citadinas, juntamente
com Rosemary's Baby e Le Locataire, todos eles assentando numa proximidade
doentia às suas personagens principais que envolve o espetador na espiral de
insanidade que estas deixam agigantar-se, Repulsion foi o primeiro filme falado
em inglês rodado por Roman Polanski e tem Londres como cenário. Catherine
Deneuve é Carole, funcionária de um salão de beleza, onde apenas tem companhia
feminina – ouve histórias sobre comportamentos inapropriados de homens todo o
dia, almoça preferencialmente sozinha e passa o resto do tempo em casa, onde
vive com a irmã Hélène (uma mulher com uma vida sexual muito ativa). As
banalidades do dia-a-dia chateiam-na, mas não as consegue evitar.
Quando Hélène decide ausentar-se
para umas férias em Itália com o amante atual, Carole terá de ficar sozinha.
Pressentindo o perigo que isso representa, ela pede à irmã para não ir, mas não
se consegue exprimir convenientemente, nem a dimensão do que se seguirá poderia
ser totalmente prevista. À noite, o desmoronar da sua sanidade manifesta-se gradualmente
através de visões de desmoronamento do seu próprio apartamento. Raios de luz
ameaçadores penetram pelas janelas, as divisões parecem mudar de dimensões e as
paredes racham ameaçadoramente. Polanski enche o ecrã com imagens
perturbadoras, projetadas maioritariamente com o silêncio ensurdecedor do
isolamento em examinação. Carole reprime-se e afasta-se constantemente do
contacto dos outros, em especial de homens. Claro que não é por isso que os
seus desejos esmorecem e acaba por os povoar com elementos negativos, de
escuridão, de violência, de violação, que reforçam o seu afastamento físico e
mental de quem quer a sua companhia, mesmo que as suas intenções sejam sinceras,
como é o caso de Colin (John Fraser), que se cruza com ela casualmente e não a
consegue esquecer.
O apartamento parece
uma pocilga, Carole falta ao trabalho e Colin decide procurá-la. Ansioso por a ver,
berra, força a entrada, parte a porta, e, envergonhado com tamanha excitação, começa
a verbalizar o amor que sente. Contudo, para Carole tal demonstração de
irracionalidade, a transbordar de testosterona (como Robin Williams disse uma
vez “o problema é que Deus deu ao homem duas cabeças e só sangue suficiente
para usar uma de cada vez”), é pretexto para a catarse de todos os seus
sentimentos conflituosos. Sem ela emitir um som ou mudar a expressão facial,
depois de uma confissão de quebrar corações, Polanski desconstrói as pieguices
dos romances de Hollywood, que a uma cena destas concederiam no mínimo uma
beijoca, e faz a loira desprotegida de camisa de noite pegar num candelabro e
rebentar com o crânio do rapaz. A partir daí já não há volta a dar. As
convenções do mundo normal estão do lado de fora destas paredes, a câmara
permanece do lado de dentro e o filme transforma-se num inferno a preto-e-branco.
A aparente
displicência com que Deneuve se passarinha por Kensington de início é um
chamariz para a atenção masculina. A atriz espicaça a curiosidade com a
inocência aparente que muitos homens acham curiosa e desejam conspurcar. Quando
começarem a pensar que a história se está a tornar aborrecida e o que vale é
ter um bom corpo em todas as cenas, é quando foram apanhados na sua teia. Nessa
altura, Polanski leva-nos para o quarto, para a cama e, eventualmente, para a
mente de Carole. Fomos tão longe e estamos tão perto que, quando nos apercebemos
da sua natureza psicótica, já não conseguimos fugir. Agarrou-nos, e vai
rebentar a nossa cabecinha também, enquanto nos vai deixando ver o que se passa
na sua. Espera, esperamos, que algo aconteça, que se suicide, que a polícia a
prenda, que um trovão caia no prédio e tudo acabe. Polanski interrompe a
loucura abruptamente, quando as alucinações se haviam já tornado inseparáveis
da realidade, com um simples zoom como ponto final, que nada resolve, pouco
revela, mas, de forma dissimulada, parece responder pela origem de tão enigmática
personalidade.
Algo que sempre me
impressionou muito em Repulsion é a gestão desse silêncio da solidão, que apenas
os mestres decidem e conseguem tornar num veículo de enredo no cinema. Muito à
semelhança do trabalho de, por exemplo, Ingmar Bergman (que, apropriadamente,
tem um grande trabalho intitulado apenas Silêncio), Polanski aponta a câmara,
põe os atores nos seus lugares e deixa que o movimento combinado de todos os
elementos transmita a essência de cada sequência. A fluidez da imagem, a fotografia
perfeita, os takes longos e os ângulos invulgares, elevam este filme a um
patamar de excelência e inovação técnica que é único nos anos 60.
9/10