É certo e sabido que Lars von Trier se tornou, graças aos
seus filmes e à sua personalidade, num realizador polémico, mas o que o separa
é a intencionalidade. Ninguém tenta chocar mais do que ele; fá-lo com tanta
convicção que acaba por congregar vários cinéfilos, instigados pelo inegável
poder das suas histórias e idiossincrasias, e com tanta ferocidade que consegue
alhear muitos outros, repelidos pelo carácter repetitivo de temas como a humilhação
e por declarações tempestuosas.
Desagrada-me a manipulação injusta seja no que for, isto é,
a distorção ou omissão de factos para apoiar uma hipótese que objectivamente não tem pernas para andar. Pior ainda é quando se dá azo ao trauma para
condicionar o julgamento de outrem. Em Dancer In The Dark vemos Bill (David
Morse) fazer isso mesmo com a sua mulher, levando-a a crer que é morto por
ganância, quando na realidade não tinha era coragem de admitir que estava na
penúria.
Parece-me compreensível que alguém se sinta colocado pelo
realizador numa posição semelhante. Björk é Selma Jezkova, emigrante
checoslovaca nos EUA, a juntar dinheiro para que o filho seja operado à
condição oftalmológica hereditária que a está a levar à cegueira. Infelizmente,
o seu senhorio tem demasiados problemas financeiros e psiquiátricos e não resiste a roubá-la, o que é particularmente desumano considerando a inocência
imaculada e espírito sonhador da inquilina.
A passividade com que esta encara a situação é que torna
Dancer In The Dark exasperante. Lars von Trier é um misantropo e esforça-se por
criar uma personagem feminina incensurável que é ameaçada pelo meio e por
pessoas que a rodeiam, mas que só acaba subjugada por culpa própria. É difícil
de aceitar que Selma esconda tudo e mais alguma coisa do filho Gene, da amiga
Kathy (Catherine Deneuve) ou do tribunal. Leio comparações com Dreyer, mas não
me lembro de Joan Of Arc ser queimada por se calar…
Se a ré não conta a sua versão ao júri e ao juiz, é
impossível o sistema funcionar a seu favor. Vermo-la ser apertada pelo advogado
de acusação é suposto revelar algum tipo de cinismo na justiça americana? Selma
é sujeita a provações chocantes, mas é importante não sermos susceptíveis ao
ponto de acharmos que é presa por crimes que não cometeu pelo que quer que seja
para além da mesquinhez do argumento, que estica os limites da abnegação até
ser um sacrifício dispensável com um preço exagerado.
A relação da personagem principal com Bill é interessante,
incluindo a violenta conclusão; a partir daí o filme é um desastre de
intenções. Para desconcertar ainda mais os sentidos, Dancer In The Dark foi
planeado como um musical. Björk faz chorar as pedras da calçada com a sua
interpretação, mas também assina uma banda-sonora que não fica a dever nada a
alguns dos seus álbuns e que é cantada nos momentos mais inesperados, incluindo
no corredor da morte.
Quanto a isto, vou citar Fernando Pessoa: “primeiro estranha-se,
depois entranha-se.” De todas as ideias mais tresloucadas de von Trier, esta
subversão de um género em decaimento, por regra pouco compatível com dramas de
cortar os pulsos, acaba por ser das mais engenhosas, pelo contraste abrupto com
o realismo das cenas-chave. Lembram-me os interlúdios em Code Unknown (2000);
só lamento que haja filmagens com tantas câmaras diferentes a tornar a
fotografia inconsistente.
Confesso admiração pela audácia deste filme, bem como por
The Idiots, Antichrist, etc. Todos eles contêm momentos em que alguém diz ou
faz exactamente o que não tem direito de dizer ou fazer, nas piores alturas
possíveis, e o impacto emocional que isso causa não é merecedor de críticas,
pelo contrário. Por outro lado, não pode cegar-nos para o contexto, que é
frequentemente contraditório e mal direccionado. Afinal, isto vem do homem que
nega odiar mulheres, mas apelida a mãe de puta.
5/10