quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

American Sniper (Clint Eastwood, 2014)

Qual é o filme, qual é ele, que ainda nem tinha estreado em Portugal este ano e já estava a levantar ondas nos EUA? American Sniper, claro. O actor Seth Rogen decidiu escrever no Twitter que o lembrava Nation’s Pride, a vil propaganda nazi imaginada em Inglourious Basterds, o realizador Michael Moore começou por lançar críticas vagas na mesma rede social, mais tarde realçando a apologia da cultura das armas no seu país e a vilificação dos árabes que, na sua opinião, marcam presença no filme, e o comediante Bill Maher apelidou Chris Kyle, a personagem principal, de psicopata.

Este homem, que passa a juventude a amealhar trocos em rodeos, cede, após o 11 de Setembro, ao espírito de vingança que pautou a acção do governo de George W. Bush, alista-se nos Navy SEALS e leva a cabo quatro excursões militares pelo Iraque nos anos que se seguem, transitando assim de cowboy para soldado, talvez as duas profissões que, até no estrangeiro, mais rapidamente se associam à sua nação. É um facto que há um certo maniqueísmo inerente à construção da identidade americana e no cinema é fácil reconhecê-lo na generalidade dos westerns e histórias de guerra que saíram de Hollywood.

Isso marcou Kyle (interpretado por Bradley Cooper), pois, como podemos observar nos flashbacks para a sua infância, foi educado a usar o sotaque sulista, a disparar espingardas, a respeitar a autoridade do cinto, a ir à igreja católica, a proteger a sua terra e a sua família com violência se necessário, a nunca dar a outra face, como um sonso chamado Jesus. Esta postura reaccionária continua a andar de mãos dadas com a facção conservadora do país, a que Clint Eastwood sempre pertenceu, como fez questão de vincar com o apoio público facultado a Mitt Romney na campanha presidencial de 2012.

Todavia, é errado reduzir American Sniper a um patriotismo saloio. Intencionalmente ou não, a invasão do Iraque está imbuída duma dinâmica de derrota desde as primeiras cenas e o suposto herói insiste num discurso de protector da liberdade, sem remorsos por ter assassinado 160 pessoas em serviço, que contrasta com o stress pós-traumático que evidencia a certa altura. Perto do fim há laivos de felicidade no seu relacionamento com a mulher e os filhos, mas não se consegue afastar a sensação de serem pouco genuínos, como uma tentativa de voltar ao normal e não um regresso ao normal verdadeiro.

Acredito que isto não seja por acaso. Mesmo sendo republicano e o expoente máximo duma América “macho man” pelos papéis que interpretou na sua carreira, Eastwood já voltou o bico ao prego por duas vezes neste século, em Flags Of Our Fathers e Gran Torino, à elevação do exército a instituição quase divina e à espiral de medo, ódio e retaliação que rege a forma como as diferenças raciais, religiosas ou políticas são discutidas em alguns círculos do outro lado do Atlântico. Um focava-se em soldados conscientes da natureza do seu trabalho ser moralmente ambígua e o outro num veterano cheio de preconceitos.

Esta é a biografia do atirador mais letal dos EUA. Não é uma obra de denúncia nem de apoio – explora as suas experiências e o vício na adrenalina de viver em situações de perigo constante (com mais clareza do que The Hurt Locker). Não há iraquianos bons – consequência da distância de Kyle das batalhas e de uma guerra cobarde de parte a parte. Os maiores escândalos de American Sniper acabam por ser o seu desleixo técnico e a sua insipidez. Tirando o tiroteio numa tempestade de areia e o dilema de atirar numa criança, resta um filme mais convencional do que pode parecer e menos americanizado do que, ironicamente, The Interview.

7/10

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