sábado, 14 de fevereiro de 2015

Gone Girl (David Fincher, 2014)

Basta uma rápida viagem pelo site da Pordata para confirmar que os casórios não só parecem estar fora de moda, tendo ocorrido uma redução para metade em número desde o início do século, como parece estar condenada a perpetuidade da cerimónia, já que, num igual período, o divórcio disparou de 30 para 70%. Estas tendências não são exclusivamente nacionais e dão azo a todo o tipo de interpretações e preocupações. Pode dizer-se que a pressão da vida moderna não se coaduna com tamanho compromisso, que as relações são cada vez mais superficiais, que as mulheres têm condições para abandonar situações precárias sem sofrerem com os estigmas de antigamente, ou até que o crescimento do agnosticismo tem depreciado a santidade do acto. Seja como for, quando duas pessoas decidem casar querem que seja para sempre. Existe a esperança de terem chegado a um ponto em que estabeleceram compromissos com os quais estão confortáveis e que servem a sua coexistência, o que nunca suprime a hipótese de aflorarem alguns conflitos e a necessidade de novas adaptações. Ninguém diz que é fácil e ninguém se livra de pensar no que o outro estará a pensar, no que o outro estará a sentir, no que o futuro reserva, esteja tudo bem ou tudo mal. Ouvimos exactamente isto no início e no fim de Gone Girl, só não podemos determinar qual momento corresponde ao melhor e ao pior que Nick (Ben Affleck) e Amy (Rosamund Pike) viveram em conjunto.

David Fincher vai ao extremo para reforçar o trabalho que dá o amor, o projecto em constante desenvolvimento que é um casamento e a impossibilidade crescente de aplicar a lógica e explicar os laços que unem um homem e uma mulher que o tempo não consegue separar. A pergunta que, estando de fora, várias vezes se faz é… porquê? A explicar: o casal Dunne chegou aos cinco anos de enlace e, num dia que deveria ser de alegria, ele está no bar que abriu com a irmã a afogar as mágoas numa cerveja logo pela matina, eventualmente voltando ao seu lar, onde é confrontado com o desaparecimento da esposa. A polícia é chamada, Nick é questionado, os progenitores de Amy são avisados, uma conferência de imprensa é marcada e o caso ganha uma dimensão mediática do dia para a noite, alavancado pela popularidade de uma personagem fictícia de livros infantis escritos pelo pai e pela mãe baseada em Amy. A sucessão de eventos apanha o marido de surpresa, que, para além da dificuldade em assimilar o que lhe está a acontecer, dando origem a reacções deslocadas e que o fazem subir ao pódio da lista de suspeitos, como anuir aos pedidos de fotógrafos e sorrir ao lado dum poster a pedir informações a quem as tiver, tem agora de esconder ainda com maior diligência a sua infidelidade (nada fácil quando, ao cabo de poucas horas, Andie, a amante, já está a bater-lhe à porta e descobrimos que se trata de Emily Ratajkowski).

Sem dúvida, Nick fica a dever um pouco à inteligência, mas nem isso nem a traição constituem crimes. Os dados não favorecem a sua posição e os flachbacks que ilustram a leitura do diário de Amy, que as autoridades encontram ligeiramente queimado na salamandra de casa do pai dele, muito menos, por isso, se for realmente inocente, ajuda era bem-vinda. Precisamente quando a procissão vai a meio, somos surpreendidos com o tipo de reviravolta que estamos habituados a ver como ponto final nos filmes de Fincher: ela está numa boa, a guiar em direcção ao pôr-do-sol, desencadeado que foi o plano perfeito para incriminar o marido pelo seu desaparecimento e acabar com nota artística uma relação que estava a dar as últimas. Isto é essencial para fundamentar os contornos absurdos que a história começa a assumir daqui para a frente. O realizador, consciente de que é primordialmente associado a policiais metódicos e austeros, graças ao sucesso de Seven, Zodiac ou The Girl With The Dragon Tattoo, sobrepõe as ideias visuais que cria nesses trabalhos à clara falta de preocupação deste mais recente com verosimilhanças. Apenas num momento essa seriedade tensa típica acaba por dar lugar à demência febril real: durante o último encontro entre Amy e o antigo namorado Desi (Neil Patrick Harris). É a única visão da dimensão da psicopatia dela, que, de resto, consegue reprimir de forma exemplar quando lhe é exigido pelas circunstâncias.

Gone Girl revela-se enganadoramente realista e Fincher diverte-se a dar novos significados às convenções dramáticas e técnicas dos géneros em que frequentemente se concentra. Já o tinha feito com The Game, mas, em retrospectiva, Gone Girl é mais completo, por partir de um pressuposto tão simples, palpável e envolvente como um casamento em dificuldades. Numa perspectiva puramente alegórica, lembra o violento Possession (Andrzej Zulawski, 1981), com as nuances políticas, indissociáveis da guerra fria, a serem substituídas por críticas óbvias à isenção inexistente de certos meios jornalísticos e à transformação de casos criminais em conteúdos televisivos de entretenimento, indissociáveis desta época de rápida disseminação de (des)informação. Basta, por cá, ver os programas da manhã dos canais de sinal aberto e pensar na falta de ética que acarreta apresentar teorias forenses infundadas entre playbacks de música pimba, dicas de culinária, sessões de cartomancia e gaffes pouco naturais do Manuel Luís Goucha. Em segundos, os media podem arruinar reputações sem consequências. No meio disto tudo, então como é que os casais passam por adversidades, uns mantêm-se juntos e outros não conseguem? Por conveniência? Por comodismo? Por terem aprendido uma lição e se terem tornado mais fortes? Há de tudo, só duas pessoas sabem a verdade completa e ambas constroem a sua versão. Como espectadores, ficamos remetidos às dúvidas.

9/10

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