terça-feira, 10 de julho de 2012

FEST 2012


Quando se pensa em Óscares, a primeira localidade que vem à cabeça do comum dos mortais é a longínqua Hollywood, com os seus numerosos estúdios, as grandes letras de ferro no monte Lee e estrelas imortais nos passeios. Mas e se eu vos dissesse que, durante uma semana, podiam encontrar e dialogar com vencedores dessas almejadas estatuetas numa pequena cidade lusitana a cerca de 30kms do Porto, mais conhecida pelo seu casino? É verdade, de 1 a 8 de Julho o FEST (Festival Internacional de Cinema Jovem) proporcionou esse contacto em Espinho, um evento que promove novos cineastas e dá a conhecer os seus trabalhos, sejam longas, curtas, ficção ou documentário, mas também investe em formação, sob a forma de conferências com profissionais com currículo nas mais variadas vertentes técnicas da sétima arte, dando perspectiva a quem está agora a começar e a quem quer que se interesse minimamente pelos temas.


05/07/2012 - Quinta

Desloquei-me cedo ao bonito Centro Multimeios de Espinho, com o intuito de levantar a minha acreditação antes da primeira sessão da manhã, uma conversa com o espanhol Fernando Trueba. Recentemente nomeado para um Óscar pela realização de Chico And Rita, uma romântica animação sobre a cena musical cubana, teve um dos pontos altos da sua carreira em 1994, quando ganhou na categoria de Melhor Filme Estrangeiro com Belle Époque (onde se passeava uma adolescente Penélope Cruz), prémio que aceitou proferindo: "Eu gostaria de acreditar em Deus para Lhe agradecer, mas só acredito em Billy Wilder, por isso obrigado Sr. Wilder." E, verdadeiro a si mesmo, Trueba mencionou o seu ídolo por mais de uma vez nas duas horas que passou com uma plateia quase exclusivamente composta por jovens na Sala Tempus (a principal do Centro), destacou The Apartment como um dos seus filmes preferidos de todos os tempos e talvez o mais perfeito de sempre a balançar drama, comentário social e comédia e falou ainda de Hitchcock, Sullivan's Travels e Renoir, entre outros. Mais concretamente sobre a sua forma de trabalhar, disse nunca usar storyboards e só montar o filme quando tem tudo gravado, processo que acompanha de perto e no qual é importante haver sintonia com o editor. Aconselhou alguns dos actores presentes a não se limitarem a estudar um método de interpretação, defeito que considera ser frequente nos americanos, tal a sua veneração pelo método de Stanislavski. O momento cómico da manhã veio quando mencionou um projecto com Sharon Stone e John Travolta que chegou a aceitar fazer e para o qual estava optimista depois de conhecer a primeira (uma mulher acessível e inteligente, segundo Trueba), mas de que acabou por desistir depois de conhecer o segundo ("não há dinheiro no Fort Knox que pagasse ter de passar mais um segundo com John Travolta").


À tarde, almoçado, depois de experimentar a t-shirt do festival que me fora dada e de consultar o programa, decidi conhecer a Sala 2. Pequena e com pouca audiência, era onde passavam ciclos de curtas e comecei por ver um da London Film School, todas muito diferentes umas das outras, das quais vou destacar três:

Their Feast (Reem Morsi, 2011) aborda superficialmente os contrastes políticos no Egipto com uma história familiar de um jovem prestes a regressar a casa depois de uma temporada na prisão, na ressaca da Primavera Árabe. A escrita perde-se um pouco na forma como a sua mãe e irmãos preparam a sua chegada, por um lado mostrando um pouco como se vive nas classes baixas daquele país, por outro não oferecendo contexto sobre os efeitos da revolução na sociedade. Contém uma óptima interpretação da mãe e é uma boa proposta para quem gosta de cinema mais naturalista. 6/10

Partition (Emile Rafael, 2011) é extremamente confuso, totalmente preso a truques de metaficção que não levam a lado nenhum. Tenta retratar com o humor dum Charlie Kaufman o repentino laivo de inspiração dum escritor, cujas ideias parecem saltar das páginas e serem mais reais que a própria realidade, mas falha completamente. 3/10

Waking At Dawn (Onyinye Egenti, 2012) foi a melhor que vi neste dia, uma curta sobre conflitos religiosos numa aldeia algures na vastidão da Nigéria, que apanha duas inocentes crianças, uma muçulmana, outra cristã. O final merecia maior intensidade, mas é legítimo dizer que calma, realismo e espaço para reflexão é o principal para a realizadora Egenti. Aconselho a quem admire Ousmane Sembene. 7/10


Às 15:30, João Pedro Rodrigues (Odete; Morrer Como Um Homem) falava no auditório principal. Discreto, disponível para entrevistas e compreensivo com todas as abordagens de vários fãs, antes e depois do workshop, o cineasta lisboeta viu a conversa ser sobretudo orientada por uma moderadora italiana para o tema da representação da sexualidade no cinema. Curiosamente, fiquei com a ideia de que é muito maior o seu interesse em manipular as convenções associadas a todo o tipo de géneros possíveis, dos mais clássicos aos mais alternativos (tendo dado como exemplo a cena de Morrer Como Um Homem em que dois soldados se distanciam do seu pelotão para fazerem sexo, uma clara subversão da masculinidade do filme de guerra), do que propriamente de explorar qualquer tipo de comportamento menos convencional, ou melhor, a sexualidade e a obsessão das suas personagens são apenas meios para atingir um fim maior, o de desafiar os códigos do cinema e as expectativas dos espectadores. É uma abordagem interessante, que talvez seja minimizada tanto pela crítica como pelo público em geral, às vezes chocados ou doentiamente fascinados demais por verem um pénis num ecrã gigante para apreciar a inteligência da escrita de João Pedro Rodrigues. É certamente uma ideia que vou ter presente quando me dedicar a explorar melhor a sua filmografia.


Para aproveitar aquele que foi o meu primeiro dia de férias neste Verão, acabei por dar uma volta na marginal de Espinho e regressar a casa ao fim da tarde em vez de ouvir Martin Walsh (vencedor de um Óscar pela montagem de Chicago em 2003) falar. Já planeava voltar 2 dias depois.

07/07/2012 - Sábado

Luc Besson é dos realizadores europeus mais influentes e conhecidos das últimas décadas. Seja como produtor/argumentista de obras-primas (not!) como Bandidas e Taxi 4 ou como realizador de filmes tão populares como León ou The 5th Element, o francês parece não tirar uma folga. Importante na concepção destes últimos terá sido também Sylvie Landra, editora. A francesa entrou na sala às 11:00 e optou por conduzir o debate com o auxílio de muitos clips dos filmes em que trabalhou, uma decisão inteligente e muito me agradou ver cenas de León ou Manolete serem esmiuçadas. Uma, em especial, do segundo ficou-me na mente: Manolete é uma biografia sobre o toureiro espanhol com esse nome, que morreu devido a ferimentos infligidos por um touro. Para o clímax, Landra teve de percorrer 30 horas de dailies, tentado capturar o espírito e as regras dos espéctaculo, e deixando no ar a dúvida sobre quem, naquele momento, naquela altura da vida de Manolete, teria com ele uma maior relação de amor/ódio, se o público, se o touro, se a namorada em quem não consegue deixar de pensar. Perspicaz foi também o debate com a plateia sobre a importância da proximidade entre montagem de imagem e som.


Para a tarde estava marcada a presença de Tom Stern (director de fotografia de Gran Torino, Mystic River ou Hunger Games), para mim um dos grandes atractivos deste FEST 2012, mas tal acabou por não acontecer. Refugiei-me então durante horas na Sala 2, onde percorri 2 ciclos de curtas, um chamado Future Shorts, o outro Noruega, e que se mostraram muito mais interessantes que o de quinta-feira.

Em Tumult (Johnny Barrington, 2011), três guerreiros nórdicos parecem perdidos e a tentar sobreviver a ferimentos contraídos em batalha. A frieza do início (que podia ter saído de um dos filmes históricos de Pasolini) é subitamente contraposta com humor muito negro: um autocarro com turistas aparece, deixando-(n)os incrédulos, a pensar como é que tal anacronismo é possível. Rapidamente há mal-entendidos a modos que violentos entre os dois grupos de eras diferentes. 8/10

Helicópteros militares a sobrevoar um deserto iniciam manobras invulgares até, propositadamente, chocarem uns contra os outros, numa bola de fogo imensa, visível a quilómetros de distância. Planícies arenosas estendem-se no horizonte, o calor e a secura perpassam pelo filme, a banda sonora ribomba, cada vez mais alto e cada vez mais desordenada, numa mescla de ataque aos sentidos, como uma visão do apocalipse, até que aparece o título da curta: We'll All Become Oil (Mihai Grecu, 2011). Inacreditável. 10/10


O ciclo de cinema norueguês sucedeu-se pouco tempo depois; no geral, o melhor e mais equilibrado deles todos, cinco curtas com execuções muito diferentes mas que me surpreenderam pela sua consistência a nível de fotografia.

Começou com Come To Heaven Of Hearts (Linn Karen Forland, 2011), uma surpreendente viagem pelo mundo de uma idosa internada num lar. Sem diálogos e com imagens e associações de imagens bizarras mas extremamente originais, provocadoras e inesquecíveis, a realizadora consegue ligar-nos à psicologia de alguém claramente no fim da vida, talvez já com muito pouca noção da realidade, apenas presa a memórias vagas. 10/10

Seguiu-se Krantsid (Sutharsan Bala, 2009), uma história mais elaborada sobre imigrantes muçulmanos na Noruega, uma família de três elementos, uma rapariga, o irmão mais novo e adolescente, e o avô de ambos. Um retrato social que mostra personagens que não estão bem inseridos na sociedade em que se movimentam e que não os respeita, presos à tradição, querendo mais, enfim, claramente um quadro passível de gerar conflitos internos e externos ao trio. Apesar de algumas cenas me terem parecido mal construídas, como o encontro aleatório inicial entre a rapariga e um condutor de comboios, a fotografia deste filme é simplesmente única, com tons tão desaturados que só vemos azul e cinzento, para além de uma grande densidade de grão. 7/10


Nostalgia (Katie Hetland, 2009) foi a mais curta de todas; apesar de ter o aspecto de um anúncio da Milka, não deixa de ser muito comovente. Um idoso viúvo recorda a sua vida, em especial a sua vida em conjunto com a mulher da sua vida, através da música. Imagens do passado são rebobinadas na tela, tal como são rebobinadas na mente do homem. Deixa uma lágrima no canto do olho. 7/10

Ao ver Scratch (Jakob Rorvik, 2008) só me vinha um nome à cabeça: Joachim Trier. Talvez o realizador norueguês mais conhecido da actualidade, a sua influência nesta história de uma artista que planeia uma exposição de fotografia é notória, desde os ambientes urbanos, à escolha da actriz principal (Viktoria Winge, a mesma de Reprise), ao tema da obsessão, os paralelismos são muitos... e bem conseguidos. Lena persegue um rapaz de maneira doentia, tirando fotografias a preto e branco quando ele está desprevenido. Ao fim de algum tempo, o rapaz torna-se consciente da sua presença, confronta-a e isto resvala para uma relação disfuncional. É um filme muito moderno, acessível e bem escrito. 8/10

Por último, The Coned Ones (Kai Remi Hagen, 2010). Uma fantasia fabulosa em que um jornalista e um cameraman descobrem uma mini-civilização à parte de reformados, algures numa floresta, todos com o mesmo aspecto, cujos únicos interesses são jogar à malha e apanhar pinhas. O realizador tanto brinca com a potencial tristeza do envelhecimento como com a perversidade dos media, de uma forma cómica, excêntrica e agridoce, tudo ao mesmo tempo. Muito original. 10/10


A Noruega tem um futuro maravilhoso pela frente com realizadores deste calibre, espero que tenham hipóteses para continuar a trabalhar.

E assim acabou a minha experiência nesta oitava edição do FEST. Sinto que devia ter visto uma das longas em competição, tinha planos para ver o islandês Volcano (que acabou por vencer), mas tal acabou por não se proporcionar. Seja como for, a boa organização, o espírito jovem e a variedade do programa deste festival fizeram da minha passagem por Espinho um prazer. É claramente um espaço de descoberta e aprendizagem, destacando-se de eventos semelhantes por causa disso. Obrigado à Renata Curado pela disponibilidade; foi uma excelente oportunidade. Até para o ano!


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