Já alguma vez se puseram a ver um filme e tiveram a sensação logo nos
primeiros segundos de que ia ser genial e no fim iam ter de reconsiderar o
vosso top100, os vossos actores preferidos ou os vossos realizadores com
carreiras mais invejáveis? Acho que se há algo mais certo e comum a todos os
cinéfilos do que compilar listas de todos os tipos, sobre todos os detalhes
possíveis e imaginários, deve ser este sexto sentido que, não sei, se calhar só
se adquire ao fim de algum tempo, mas que aparece aqui e ali como uma
premonição repentina de que estamos bem encaminhados para uma grande viagem
no conforto da nossa cadeira assim que aparecem os créditos iniciais.
Não sei bem explicar porque é que isso acontece e de certeza que as
razões são diferentes de pessoa para pessoa, mas Seance On A Wet Afternoon foi um
desses filmes para mim. Abre em cold open com uma sessão espírita enigmática e
a seguir desfilam planos cheios de contrastes nítidos a preto e branco de um
bairro tipicamente inglês, coberto pelo mais sibilino de todos os scores de
John Barry, onde a humidade da chuva indicia acontecimentos futuros nublosos.
No interior de uma das casas mora Myra e Billy, mulher e marido, médium e
assistente, Kim Stanley e Richard Attenborough. Vestidos de preto num quarto
completamente branco, têm tudo pronto e a bênção de Arthur...
Tudo o quê? Arthur quem? Isso são perguntas que vão tendo resposta ao
longo do filme. Claro é que a segurança de Myra contrasta com a relutância de
Billy em levar a cabo o plano que lhes vai trazer dinheiro e atenção para o
suposto dom supernatural dela: raptar a filha de um casal rico e oferecer
serviços de consultadoria espiritual ao mesmo e à polícia, controlando a
situação de duas maneiras, por um lado recolhendo o dinheiro da recompensa, por
outro resolvendo a questão ao reunir a família quando bem lhes apetecer. Apesar
da frieza com que falam, executam e prolongam as suas transgressões, há
intangíveis que Myra e Billy têm dificuldade em conciliar, alguns criados por
eles.
Isto porque aquilo que os separa é talvez mais do que aquilo que os
une. No meio do circo que erguem à sua volta está essa dúvida, são duas pessoas
com mágoas profundas e caracteres antagónicos. Ela, dominante, controladora,
sempre pronta a atirar as culpas da mais simples contrariedade para o marido
(brilhante o pormenor de ela desligar uma grafonola enquanto fala e depois
acusar Billy de o ter feito, quando finalmente se cala e nota a ausência de
música - claro que nós não sabemos se ela se lembra ou se melindra o marido por
maldade), mas nunca perde a compostura. Ele, patético, com maior coração, menor
coragem, manietado por Myra durante anos, reduzido a um tarefeiro cobarde.
Stanley e Attenborough têm o tipo de prestação que merece Óscares, sim,
mas também vénias, salmos, templos e oferendas divinas. São de outro mundo, de
uma química inabalável, com uma atenção e uma personificação extremas, cuja
contenção, típica de quem quer evitar conflitos, é ainda mais desesperante
dadas as circunstâncias e ainda mais amplificada dado o silêncio cortante em
que Bryan Forbes deixa as cenas mais intensas a marinar. O realizador cria a
mais ululante atmosfera a partir da secura com que este casal se trata e com a
secura com que este casal trata os crimes que cometem, guardados como segredos
em enquadramentos perfeitos, numa casa suburbana perfeita.
Tornam-se muito tristes e desconfortáveis os demónios que Myra e Billy
carregam dentro de si. Ela, em especial, construiu um mundo de ilusão em que
tem poderes que o comum dos mortais não tem, para ultrapassar o passado, para
se superiorizar ao marido, para se sentir importante, que a afastou
completamente da realidade. O marido é cúmplice por não a confrontar. É
doloroso ver duas pessoas resvalarem desta forma. Todos os elogios que se
possam fazer à realização, escrita e interpretação exibidas em Seance On A Wet
Afternoon são poucos, é um thriller com uma carga psicológica, uma humanidade e
uma paciência inauditas, que não se encontram no cinema de hoje.
9/10
Não conhecia esse filme ainda, e gostaria muito de conhecer o lado ator de Richard Attenborough.
ResponderEliminarAbraços!