Quando se pensa em Óscares, a primeira localidade que vem à cabeça do
comum dos mortais é a longínqua Hollywood, com os seus numerosos estúdios, as
grandes letras de ferro no monte Lee e estrelas imortais nos passeios. Mas e se
eu vos dissesse que, durante uma semana, podiam encontrar e dialogar com
vencedores dessas almejadas estatuetas numa pequena cidade lusitana a cerca de
30kms do Porto, mais conhecida pelo seu casino? É verdade, de 1 a 8 de Julho o
FEST (Festival Internacional de Cinema Jovem) proporcionou esse contacto em
Espinho, um evento que promove novos cineastas e dá a conhecer os seus
trabalhos, sejam longas, curtas, ficção ou documentário, mas também investe em
formação, sob a forma de conferências com profissionais com currículo nas mais
variadas vertentes técnicas da sétima arte, dando perspectiva a quem está agora
a começar e a quem quer que se interesse minimamente pelos temas.
05/07/2012 - Quinta
Desloquei-me cedo ao bonito Centro Multimeios de Espinho, com o intuito
de levantar a minha acreditação antes da primeira sessão da manhã, uma conversa
com o espanhol Fernando Trueba. Recentemente nomeado para um Óscar pela
realização de Chico And Rita, uma romântica animação sobre a cena musical
cubana, teve um dos pontos altos da sua carreira em 1994, quando ganhou na
categoria de Melhor Filme Estrangeiro com Belle Époque (onde se passeava uma
adolescente Penélope Cruz), prémio que aceitou proferindo: "Eu gostaria de
acreditar em Deus para Lhe agradecer, mas só acredito em Billy Wilder, por isso
obrigado Sr. Wilder." E, verdadeiro a si mesmo, Trueba mencionou o seu
ídolo por mais de uma vez nas duas horas que passou com uma plateia quase
exclusivamente composta por jovens na Sala Tempus (a principal do Centro),
destacou The Apartment como um dos seus filmes preferidos de todos os tempos e
talvez o mais perfeito de sempre a balançar drama, comentário social e comédia
e falou ainda de Hitchcock, Sullivan's Travels e Renoir, entre outros. Mais
concretamente sobre a sua forma de trabalhar, disse nunca usar storyboards e só
montar o filme quando tem tudo gravado, processo que acompanha de perto e no
qual é importante haver sintonia com o editor. Aconselhou alguns dos actores
presentes a não se limitarem a estudar um método de interpretação, defeito que
considera ser frequente nos americanos, tal a sua veneração pelo método de
Stanislavski. O momento cómico da manhã veio quando mencionou um projecto com
Sharon Stone e John Travolta que chegou a aceitar fazer e para o qual estava
optimista depois de conhecer a primeira (uma mulher acessível e inteligente,
segundo Trueba), mas de que acabou por desistir depois de conhecer o segundo
("não há dinheiro no Fort Knox que pagasse ter de passar mais um segundo
com John Travolta").
À tarde, almoçado, depois de experimentar a t-shirt do festival que me
fora dada e de consultar o programa, decidi conhecer a Sala 2. Pequena e com
pouca audiência, era onde passavam ciclos de curtas e comecei por ver um da
London Film School, todas muito diferentes umas das outras, das quais vou
destacar três:
Their Feast (Reem Morsi, 2011) aborda superficialmente os contrastes
políticos no Egipto com uma história familiar de um jovem prestes a regressar a
casa depois de uma temporada na prisão, na ressaca da Primavera Árabe. A
escrita perde-se um pouco na forma como a sua mãe e irmãos preparam a sua
chegada, por um lado mostrando um pouco como se vive nas classes baixas daquele
país, por outro não oferecendo contexto sobre os efeitos da revolução na
sociedade. Contém uma óptima interpretação da mãe e é uma boa proposta para
quem gosta de cinema mais naturalista.
6/10
Partition (Emile Rafael, 2011) é extremamente confuso, totalmente preso
a truques de metaficção que não levam a lado nenhum. Tenta retratar com o humor
dum Charlie Kaufman o repentino laivo de inspiração dum escritor, cujas ideias
parecem saltar das páginas e serem mais reais que a própria realidade, mas
falha completamente.
3/10
Já
Waking At Dawn (Onyinye Egenti, 2012) foi a melhor que vi neste dia,
uma curta sobre conflitos religiosos numa aldeia algures na vastidão da
Nigéria, que apanha duas inocentes crianças, uma muçulmana, outra cristã. O
final merecia maior intensidade, mas é legítimo dizer que calma, realismo e
espaço para reflexão é o principal para a realizadora Egenti. Aconselho a quem
admire Ousmane Sembene.
7/10
Às 15:30, João Pedro Rodrigues (Odete; Morrer Como Um Homem) falava no
auditório principal. Discreto, disponível para entrevistas e compreensivo com
todas as abordagens de vários fãs, antes e depois do workshop, o cineasta
lisboeta viu a conversa ser sobretudo orientada por uma moderadora italiana para
o tema da representação da sexualidade no cinema. Curiosamente, fiquei com a
ideia de que é muito maior o seu interesse em manipular as convenções
associadas a todo o tipo de géneros possíveis, dos mais clássicos aos mais
alternativos (tendo dado como exemplo a cena de Morrer Como Um Homem em que
dois soldados se distanciam do seu pelotão para fazerem sexo, uma clara
subversão da masculinidade do filme de guerra), do que propriamente de explorar
qualquer tipo de comportamento menos convencional, ou melhor, a sexualidade e a
obsessão das suas personagens são apenas meios para atingir um fim maior, o de
desafiar os códigos do cinema e as expectativas dos espectadores. É uma
abordagem interessante, que talvez seja minimizada tanto pela crítica como pelo
público em geral, às vezes chocados ou doentiamente fascinados demais por verem
um pénis num ecrã gigante para apreciar a inteligência da escrita de João Pedro
Rodrigues. É certamente uma ideia que vou ter presente quando me dedicar a
explorar melhor a sua filmografia.
Para aproveitar aquele que foi o meu primeiro dia de férias neste
Verão, acabei por dar uma volta na marginal de Espinho e regressar a casa ao
fim da tarde em vez de ouvir Martin Walsh (vencedor de um Óscar pela montagem
de Chicago em 2003) falar. Já planeava voltar 2 dias depois.
07/07/2012 - Sábado
Luc Besson é dos realizadores europeus mais influentes e conhecidos das
últimas décadas. Seja como produtor/argumentista de obras-primas (not!) como
Bandidas e Taxi 4 ou como realizador de filmes tão populares como León ou The
5th Element, o francês parece não tirar uma folga. Importante na concepção
destes últimos terá sido também Sylvie Landra, editora. A francesa entrou na
sala às 11:00 e optou por conduzir o debate com o auxílio de muitos clips dos
filmes em que trabalhou, uma decisão inteligente e muito me agradou ver cenas
de León ou Manolete serem esmiuçadas. Uma, em especial, do segundo ficou-me na
mente: Manolete é uma biografia sobre o toureiro espanhol com esse nome, que
morreu devido a ferimentos infligidos por um touro. Para o clímax, Landra teve
de percorrer 30 horas de dailies, tentado capturar o espírito e as regras dos
espéctaculo, e deixando no ar a dúvida sobre quem, naquele momento, naquela
altura da vida de Manolete, teria com ele uma maior relação de amor/ódio, se o
público, se o touro, se a namorada em quem não consegue deixar de pensar.
Perspicaz foi também o debate com a plateia sobre a importância da proximidade
entre montagem de imagem e som.
Para a tarde estava marcada a presença de Tom Stern (director de
fotografia de Gran Torino, Mystic River ou Hunger Games), para mim um dos
grandes atractivos deste FEST 2012, mas tal acabou por não acontecer.
Refugiei-me então durante horas na Sala 2, onde percorri 2 ciclos de curtas, um
chamado Future Shorts, o outro Noruega, e que se mostraram muito mais
interessantes que o de quinta-feira.
Em
Tumult (Johnny Barrington, 2011), três guerreiros nórdicos parecem
perdidos e a tentar sobreviver a ferimentos contraídos em batalha. A frieza do
início (que podia ter saído de um dos filmes históricos de Pasolini) é
subitamente contraposta com humor muito negro: um autocarro com turistas
aparece, deixando-(n)os incrédulos, a pensar como é que tal anacronismo é
possível. Rapidamente há mal-entendidos a modos que violentos entre os dois
grupos de eras diferentes.
8/10
Helicópteros militares a sobrevoar um deserto iniciam manobras
invulgares até, propositadamente, chocarem uns contra os outros, numa bola de
fogo imensa, visível a quilómetros de distância. Planícies arenosas estendem-se
no horizonte, o calor e a secura perpassam pelo filme, a banda sonora ribomba,
cada vez mais alto e cada vez mais desordenada, numa mescla de ataque aos
sentidos, como uma visão do apocalipse, até que aparece o título da curta:
We'll All Become Oil (Mihai Grecu, 2011). Inacreditável.
10/10
O ciclo de cinema norueguês sucedeu-se pouco tempo depois; no geral, o
melhor e mais equilibrado deles todos, cinco curtas com execuções muito
diferentes mas que me surpreenderam pela sua consistência a nível de
fotografia.
Começou com
Come To Heaven Of Hearts (Linn Karen Forland, 2011), uma
surpreendente viagem pelo mundo de uma idosa internada num lar. Sem diálogos e
com imagens e associações de imagens bizarras mas extremamente originais,
provocadoras e inesquecíveis, a realizadora consegue ligar-nos à psicologia de
alguém claramente no fim da vida, talvez já com muito pouca noção da realidade,
apenas presa a memórias vagas.
10/10
Seguiu-se
Krantsid (Sutharsan Bala, 2009), uma história mais elaborada
sobre imigrantes muçulmanos na Noruega, uma família de três elementos, uma rapariga,
o irmão mais novo e adolescente, e o avô de ambos. Um retrato social que mostra
personagens que não estão bem inseridos na sociedade em que se movimentam e que
não os respeita, presos à tradição, querendo mais, enfim, claramente um quadro
passível de gerar conflitos internos e externos ao trio. Apesar de algumas
cenas me terem parecido mal construídas, como o encontro aleatório inicial
entre a rapariga e um condutor de comboios, a fotografia deste filme é
simplesmente única, com tons tão desaturados que só vemos azul e cinzento, para
além de uma grande densidade de grão.
7/10
Nostalgia (Katie Hetland, 2009) foi a mais curta de todas; apesar de ter o aspecto de um
anúncio da Milka, não deixa de ser muito comovente. Um idoso viúvo recorda a
sua vida, em especial a sua vida em conjunto com a mulher da sua vida, através
da música. Imagens do passado são rebobinadas na tela, tal como são rebobinadas
na mente do homem. Deixa uma lágrima no canto do olho.
7/10
Ao ver
Scratch (Jakob Rorvik, 2008) só me vinha um nome à cabeça:
Joachim Trier. Talvez o realizador norueguês mais conhecido da actualidade, a
sua influência nesta história de uma artista que planeia uma exposição de
fotografia é notória, desde os ambientes urbanos, à escolha da actriz principal
(Viktoria Winge, a mesma de Reprise), ao tema da obsessão, os paralelismos são muitos...
e bem conseguidos. Lena persegue um rapaz de maneira doentia, tirando
fotografias a preto e branco quando ele está desprevenido. Ao fim de algum
tempo, o rapaz torna-se consciente da sua presença, confronta-a e isto resvala
para uma relação disfuncional. É um filme muito moderno, acessível e bem
escrito.
8/10
Por último,
The Coned Ones (Kai Remi Hagen, 2010). Uma fantasia
fabulosa em que um jornalista e um cameraman descobrem uma mini-civilização à
parte de reformados, algures numa floresta, todos com o mesmo aspecto, cujos
únicos interesses são jogar à malha e apanhar pinhas. O realizador tanto brinca
com a potencial tristeza do envelhecimento como com a perversidade dos media,
de uma forma cómica, excêntrica e agridoce, tudo ao mesmo tempo. Muito
original.
10/10
A Noruega tem um futuro maravilhoso pela frente com realizadores deste
calibre, espero que tenham hipóteses para continuar a trabalhar.
E assim acabou a minha experiência nesta oitava edição do FEST. Sinto
que devia ter visto uma das longas em competição, tinha planos para ver o
islandês Volcano (que acabou por vencer), mas tal acabou por não se proporcionar.
Seja como for, a boa organização, o espírito jovem e a variedade do programa
deste festival fizeram da minha passagem por Espinho um prazer. É claramente um
espaço de descoberta e aprendizagem, destacando-se de eventos semelhantes por
causa disso. Obrigado à Renata Curado pela disponibilidade; foi uma excelente
oportunidade. Até para o ano!