quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Star Wars: The Force Awakens (J.J. Abrams, 2015)

Nunca fui grande fã de Star Wars. Talvez seja a forma mais justa de começar este texto. Enquanto ficção científica, é um universo desprovido de extrapolações para o mundo real, não havendo quaisquer comentários sociais ou culturais contemporâneos subentendidos, exceto a inoperabilidade da democracia levada ao extremo por uma república com milhões de vozes divergentes. Enquanto filme de aventura, o carisma das personagens e a dimensão dos cenários geraram momentos icónicos de ação, repletos de reviravoltas, ainda que com base em um maniqueísmo simplista, tirando Darth Vader, sendo por isso, além do seu visual, a figura que mais se destaca, merecendo o lugar central na trilogia anterior.

Isto é importante porque, mais do que qualquer Episódio até agora, The Force Awakens apela à nostalgia de quem adquiriu uma ligação emocional forte com a saga. As referências ao passado eram, obviamente, inevitáveis, mas analisemos o contexto. 30 anos depois de Return Of The Jedi, no qual Vader e Palpatine morrem, deixando a pairar a ideia de que o Império terá caído de vez, somos agora confrontados com uma organização que parece ter herdado os seus meios e fundos, mão-de-obra e vileza: a Primeira Ordem. A estética nazi-chic, nomeadamente a organização irrepreensível, o líder inflexível que adota como braço direito alguém que deve hesitar no último minuto e a procura pela arma perfeita, não engana.

Apesar de acossada pela destruição planeada pelo lado negro da Força na trilogia original, somos levados a concluir que a República terá assistido impávida e serenamente ao surgimento de uma nova ameaça, cujo crescimento foi tal que se apresentam, tão pouco tempo depois, com uma nova Death Star, que suga a energia de sóis, concentrando-a num raio capaz de destruir planetas inteiros. Um grupo de inconformistas, sob a liderança de Leia, concentra-se clandestinamente para travar a luta a que a política vira a cara. Graças a um punhado de coincidências oportunas, surgem heróis improváveis. A probabilidade de virem a dominar a Força e de terem laços de sangue com os vilões ou com antigos conhecidos é grande.

Se estiverem a pensar que isto é algo familiar é porque o enredo é exatamente o mesmo de A New Hope. Há duas agravantes, em primeiro lugar o efeito-surpresa que atingiu o cinema em 1977 é irrepetível, tornando The Force Awakens previsível, e em segundo lugar, considerando os antecedentes, não é minimamente credível que os factos se sucedam sem grandes variações em relação a esse filme. Pode-se argumentar que também não se esperaria que a Alemanha causasse duas Guerras Mundiais no espaço de 25 anos, contudo fica um sentimento de este argumento reduzir o impacto dos Episódios IV, V e VI ao mínimo. São quase irrelevantes na memória coletiva da galáxia, mas reciclados para não comprometer a relação com os fãs.

Ver Han Solo, Chewbacca e os Skywalker com os cabelos brancos é entretenimento de qualidade apenas para o espectador que já os venerava. Para o resto, as personagens Finn e Rey são bem-vindas. John Boyega interpreta um stormtrooper que rejeita ser um cordeirinho. Daisy Ridley é uma sucateira cheia de carácter. O futuro é promissor para estes jovens atores, a quem o humor ao estilo de Guardians Of The Galaxy assenta como uma luva, sem esquecer a intensidade a que, ela em especial, se sujeita nas cenas com Kylo Ren, um adolescente com tiques de Vader. Sem querer ser injusto com J.J. Abrams e restante staff, visto que mais revelações se aproximam, The Force Awakens é, numa palavra, competente.

6/10

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Frankenstein (James Whale, 1931)

Seria obviamente incorreto proclamar 1931 como o ano da popularização do cinema de terror, visto que a intenção de aumentar a adrenalina nos espectadores e a procura pela materialização em celuloide dos mais profundos medos humanos e das histórias mais bizarras alguma vez escritas constituem um binário que remonta inclusive ao século anterior, a pioneiros como Georges Méliès. Nos estúdios de Potsdam, o centro de toda a produção da República de Weimar, Robert Wiene congeminara The Cabinet Of Dr. Caligari (1920) e Faust (1926), obras seminais do expressionismo alemão. Lon Chaney Sr. já fazia sucesso em dezenas de papéis diferentes.

Ainda assim, 1931 pode ser considerado um ano pivô, marcado pelo lançamento de três adaptações míticas: Dracula, Dr. Jeckyll And Mr. Hyde e Frankenstein. Os livros de Bram Stoker, Robert Louis Stevenson e Mary Shelley, respetivamente, têm lugar assegurado no panteão da literatura intemporal, pela reconstrução de mitos ancestrais, pela exposição de doenças mentais ou pela exploração dos limites da ciência. Os três filmes diferem em tom: o primeiro é silencioso, lúgubre, subtil; o segundo é criativo, açucarado, com muitas alterações em relação ao livro; o terceiro contém cometários sociais, é mais violento e o único em que a personagem marcante não é a principal.

Henry Frankenstein é filho de um barão e ex-estudante de medicina, tendo saído da casa de família e da universidade pelo mesmo motivo: concentrar-se nas suas experiências de ressuscitação humana com recurso à eletricidade, utilizando membros e órgãos recolhidos à socapa de vários corpos. Refugiado numa torre de vigia abandonada, o jovem quer provar às suas figuras masculinas de referência que estão errados, tanto ao pai incompreensivo como ao professor de neurologia cético. Pode-se especular que Henry se rebela para conseguir a aprovação de ambos, conseguindo apenas a do Dr. Waldman, que o auxilia e morre como consequência.

O argumento é mais explícito quanto à relação com Elizabeth. Apesar do casamento constantemente adiado, o amor e respeito são mútuos, talvez por cobrarem pouco um ao outro, num ambiente de riqueza material e expectativas altas. Os Frankenstein contrastam com a aparente pobreza e isolamento da região rodeada por altas montanhas peladas. Apesar de nos interessarmos pelos desafios que enfrentam, importa reforçar a sua arrogância. Henry sente-se um Deus quando finalmente consegue atingir o seu objetivo. O barão apenas fala de si, maltrata o presidente da câmara sem motivo e acha que ser bom governante é disponibilizar cerveja para todos os concidadãos em dias de festa.

Numa noite de trovoada, um fenómeno eletrostático adequado para garantir o bom funcionamento da maquinaria montada na torre transformada em laboratório, o monstro, cosido a partir de pedaços de outros monstros, designadamente o cérebro de um criminoso, ganha vida. Boris Karloff entra em cena. Cabelo lambido, sem sobrancelhas, parafusos no pescoço, esta criação desafia os limites éticos da ciência sem dizer uma palavra. Se a morte passa a ser reversível, que restrição moral se pode associar ao ato de matar? Na cena mais mítica do filme, Karloff abre o rosto num sorriso ao ser confrontado com a inocência de uma criança, segundos antes de a mandar para o fundo dum lago.

A criatura que representa o milagre da ressuscitação mata indiscriminadamente. O revés é violento, repentino… sublime. Décadas depois, John Connor ensina a mesma expressão facial a uma máquina letal em Terminator 2: Judgment Day (1991), provando a sua influência. Está tudo nos clássicos. Não se pode dizer que Frankenstein seja tão assustador como quando saiu, claro, e o epílogo revela-se dispensável, mas o estilo visual gótico não perde o seu valor artístico, a interpretação de Karloff continua a ter impacto e os temas abordados são sempre relevantes. Este é um monumento de relevo num género que nunca mais parou de surpreender.

9/10

sábado, 5 de dezembro de 2015

Things We Lost In The Fire (Susanne Bier, 2007)

Susanne Bier pode-se vangloriar de pertencer ao restrito grupo de realizadores europeus a fazer filmes – no plural – em Hollywood. Não que essa transição seja sempre positiva, mas é frequentemente uma hipótese de trabalhar com outros recursos e de chamar a atenção de mais pessoas para uma carreira. Ainda assim, Bier não abdicou das suas imagens de marca e consegue aqui desenvolver mais um drama sólido, como nos vinha habituando a partir de outras geografias.

O início do filme deixa algumas reticências, pela colagem demasiado forçada ao estilo de escrita de Guillermo Arriaga, em voga depois do reconhecimento de Babel um ano antes. Não se pode dizer que a não-linearidade afete a coesão da história. Há alguma lentidão e repetição, que se revelam insuficientes para enfraquecer a evolução emocional das personagens, antes ajudam a construir um maior realismo sobre a dificuldade de perder um ente querido.

Esse é o foco de Things We Lost In The Fire, via a evocação de Brian Burke (David Duchovny), pai e marido, cuja memória paira insistentemente, depois de morrer num crime sem sentido, quando tentava parar um homem de espancar a própria mulher em plena rua, numa noite em que este tinha decidido visitar o amigo de infância Jerry (Benicio Del Toro), contra a vontade da esposa Audrey (Halle Berry).

Os laços que se vão criando entre os que se mantêm no mundo dos vivos extrapolam os sentimentos e motivam grandes mudanças na vida de todos, não só para ultrapassar a dor, como também para corrigirem falhas de carácter que carregam há demasiado tempo e que nunca tiveram coragem de enfrentar. Jerry e Audrey, tal como os atores que interpretam os papéis, são um par improvável e, talvez por isso, muito interessante de seguir.

Halle Berry encontrou aqui um novo papel dramático bem construído, depois de ter andado algo perdida desde o sucesso de Monster's Ball, mas é Benicio Del Toro que carrega este filme, na maior parte. As suas expressões cansadas e melancólicas assentam que nem uma luva e nota-se muita preparação nas cenas que são provavelmente as mais chocantes, em que tem de encarar as tentativas de reabilitação de Jerry, no fundo um junkie viciado em heroína.

O argumento é paciente e encontra sempre o tom adequado para cada situação, com especial destaque para os diálogos das crianças, que inúmeras vezes são notas de rodapé em dramas familiares desta índole. Há a lamentar o desperdício de uma ou outra personagem, como Kelly (Alison Lohman), uma drogada que Jerry conhece em grupos de apoio. O processo de filmagens, com câmaras de mão a gravar muito perto dos atores, e a fotografia, a realçar reflexos e luminosidades fortes, são soluções estéticas que ajudam à criação de um ambiente intimista. Things We Lost In The Fire é um drama eficaz.

7/10

domingo, 22 de novembro de 2015

Child Of Rage (realizador omitido, 1990)

“The program you are about to see was compiled from the actual therapy tapes of Dr. Ken Magid, a clinical psychologist specializing in the treatment of severely abused children – children so traumatized in the first years of life that they do not bond with other people. They’re children who cannot love or accept love. Children without conscience, who can hurt or even kill without remorse. This film shows the devastating effects of abuse on a child. It also shows that victims can be helped. It is the story of a six and a half years old girl named Beth.”

Quando um filme abre com um aviso destes, o melhor é engolir em seco. Realmente, Child Of Rage não é uma visualização fácil. Apesar de consistir maioritariamente de entrevistas gravadas pelo psicólogo infantil supramencionado na privacidade do seu consultório, o teor das conversas entre ele e uma criança com os olhos mais azuis e inocentes que se pode imaginar é chocante. Não só isso, como também a facilidade dos relatos, sem qualquer sinal de remorsos, medo ou consciência da desadequação e até perigosidade dos seus atos.

O diagnóstico é transtorno de apego reativo, uma condição que pode ser associada a experiências traumáticas na infância e que levam ao desenvolvimento de padrões de comportamento divergentes e de uma enorme inabilidade para formar laços afetivos de qualquer tipo. Beth foi adotada, juntamente com o irmão mais novo, Jonathan, pelos Thomas, Tim e Julia, que não conseguiam ter filhos. Cedo se aperceberam dos graves problemas emocionais da menina em especial, que mata animais com inaudita frieza, se masturba em público, rouba facas e agride Jonathan nos genitais repetidamente.

Ao terapeuta, relata estes episódios e ainda um pesadelo recorrente em que o pai biológico a viola quando tinha apenas 1 ano... Com todos estes dados, o casal que a acolheu é aconselhado a colocar Beth temporariamente num centro de terapia específico para crianças perigosas para si e para os que as rodeiam, onde estão longe das figuras que aprenderam a desrespeitar e onde têm de seguir regras estritas que lhes ocupam os dias e pretendem motivar as respostas emocionais humanas que lhes foram negadas pelos abusos que sofreram.

Os métodos deviam ser explorados com maior detalhe, não só para dar contexto à evidente recuperação que é exibida na entrevista final, em que Beth chora com o doutor Magid ao relembrar a violência que infligiu no irmão, em claro contraste com as conversas gravadas meses antes, mas também para desmistificar as controvérsias que por vezes são levantadas quanto ao papel da psicologia em casos destes. Child Of Rage é um documento chocante e fascinante sobre realidades extremamente difíceis de abordar. É possível evitar que as vítimas de hoje sejam os agressores de amanhã.

7/10

domingo, 8 de novembro de 2015

The Mist (Frank Darabont, 2007)

De vez em quando saem filmes que, de tão maus, chegam a enfurecer. The Mist, a centésima quadragésima nona colaboração entre Frank Darabont e Stephen King, é um conto de terror no qual uma estranha tempestade espalha um nevoeiro denso que esconde criaturas com grande apetite, o que vai forçar um grupo de cidadãos de uma pequena vila a refugiar-se no supermercado local por tempo indeterminado. Logo à partida, quantas vezes é que já se viu esta fórmula? Mas tentemos deixar essa constatação de lado, porque também várias foram já as vezes em que a limitação da história não inviabilizou alguma originalidade (lembre-se o sucesso que foram Shaun Of The Dead ou 28 Days Later no género zombie). Há um ponto relevante em The Mist: o intuito de Darabont em fazer ressoar algumas preocupações da sociedade atual, sendo o exemplo mais óbvio a personagem de Mrs. Carmody (Marcia Gay Harden), cujo extremismo religioso avilta grande parte dos sobreviventes em pouco tempo de reclusão. De lunática bizarra a profetisa em tempo de desespero vai apenas um passinho. É assustador verificar que a humanidade dos que a rodeiam se esvanece rapidamente (ao contrário do nevoeiro, que persiste, imperscrutável) e que a sua palavra passa a ser seguida, apesar de não oferecer nenhuma solução, apenas violência e ilusão. Para além disto, claramente, o medo, do desconhecido, e, por vezes, de outros como nós, é um tema recorrente, havendo ainda espaço para incluir a culpabilização do exército por atividades perigosas e sem ética, facto porventura mais direcionado aos espectadores americanos.

Mrs. Carmody é uma figura muito bem construída. O resto não. Temos meia dúzia de estereótipos que já foram criados há décadas e podemos prever todos os seus diálogos e reações. Temos sempre alguma voz a sublinhar a base psicológica de cada cena, ou seja, o nível de condescendência para com o espectador ultrapassa o tolerável. E temos interpretações carentes e displicentes. Thomas Jane, coitado, não consegue carregar um filme, por muito que tente (e tenta há décadas). Marcia Gay Harden é a atriz menos subtil a trabalhar em Hollywood, mas tem a sorte de isso ser minimamente adequado aqui. Não deixa de ser um prazer polvilhado de ironia e algo depravado ver, depois de anos em ótimos filmes que só não são perfeitos por sua causa (Miller's Crossing, Mystic River), a sua cabeça trespassada por uma bala.

The Mist tresanda a amadorismo por todos os poros. Se viram The Shawshank Redemption ou The Green Mile terão certamente ficado fascinados com algumas das imagens poderosas que evocam, com os grandes planos e o trabalho de câmara sóbrio que os atravessa. Isso não existe aqui. Toda a realização parece improvisada e apressada, como num episódio da série The Unit, mas com noções de cinemática muito mais básicas. Os efeitos especiais são do mais retardado e artificial que alguma vez se viu numa produção milionária deste tipo, como tentáculos pixelizados cujos movimentos não se adequam aos dos atores com quem partilham as cenas. Há falhas no suposto realismo do filme que detraem da experiência, por exemplo um gerador barulhento exceto quando ninguém está a falar ou sacos de comida para cão que se multiplicam do nada conforme a necessidade dos lojistas. Isto sem esquecer os enredos sem solução e lugares-comuns do argumento, que se sucedem a ritmo alucinante. Uma mulher que sai da loja a correr logo no início da trama, e que, milagrosamente, aparece sã e salva nos últimos segundos de película. Soldados suicidas. Um fim deveras irracional e desadequado, que apenas tenta jogar com a nossa pena. Há tanto de problemático, forçado e simplesmente errado com The Mist que é difícil formar qualquer ligação com a ação e emoção que tenta desenvolver.

2/10

sábado, 31 de outubro de 2015

Repulsion (Roman Polanski, 1965)

Incluído numa trilogia informal sobre terror urbano e mistérios em habitações citadinas, juntamente com Rosemary's Baby e Le Locataire, todos eles assentando numa proximidade doentia às suas personagens principais que envolve o espetador na espiral de insanidade que estas deixam agigantar-se, Repulsion foi o primeiro filme falado em inglês rodado por Roman Polanski e tem Londres como cenário. Catherine Deneuve é Carole, funcionária de um salão de beleza, onde apenas tem companhia feminina – ouve histórias sobre comportamentos inapropriados de homens todo o dia, almoça preferencialmente sozinha e passa o resto do tempo em casa, onde vive com a irmã Hélène (uma mulher com uma vida sexual muito ativa). As banalidades do dia-a-dia chateiam-na, mas não as consegue evitar.

Quando Hélène decide ausentar-se para umas férias em Itália com o amante atual, Carole terá de ficar sozinha. Pressentindo o perigo que isso representa, ela pede à irmã para não ir, mas não se consegue exprimir convenientemente, nem a dimensão do que se seguirá poderia ser totalmente prevista. À noite, o desmoronar da sua sanidade manifesta-se gradualmente através de visões de desmoronamento do seu próprio apartamento. Raios de luz ameaçadores penetram pelas janelas, as divisões parecem mudar de dimensões e as paredes racham ameaçadoramente. Polanski enche o ecrã com imagens perturbadoras, projetadas maioritariamente com o silêncio ensurdecedor do isolamento em examinação. Carole reprime-se e afasta-se constantemente do contacto dos outros, em especial de homens. Claro que não é por isso que os seus desejos esmorecem e acaba por os povoar com elementos negativos, de escuridão, de violência, de violação, que reforçam o seu afastamento físico e mental de quem quer a sua companhia, mesmo que as suas intenções sejam sinceras, como é o caso de Colin (John Fraser), que se cruza com ela casualmente e não a consegue esquecer.

O apartamento parece uma pocilga, Carole falta ao trabalho e Colin decide procurá-la. Ansioso por a ver, berra, força a entrada, parte a porta, e, envergonhado com tamanha excitação, começa a verbalizar o amor que sente. Contudo, para Carole tal demonstração de irracionalidade, a transbordar de testosterona (como Robin Williams disse uma vez “o problema é que Deus deu ao homem duas cabeças e só sangue suficiente para usar uma de cada vez”), é pretexto para a catarse de todos os seus sentimentos conflituosos. Sem ela emitir um som ou mudar a expressão facial, depois de uma confissão de quebrar corações, Polanski desconstrói as pieguices dos romances de Hollywood, que a uma cena destas concederiam no mínimo uma beijoca, e faz a loira desprotegida de camisa de noite pegar num candelabro e rebentar com o crânio do rapaz. A partir daí já não há volta a dar. As convenções do mundo normal estão do lado de fora destas paredes, a câmara permanece do lado de dentro e o filme transforma-se num inferno a preto-e-branco.

A aparente displicência com que Deneuve se passarinha por Kensington de início é um chamariz para a atenção masculina. A atriz espicaça a curiosidade com a inocência aparente que muitos homens acham curiosa e desejam conspurcar. Quando começarem a pensar que a história se está a tornar aborrecida e o que vale é ter um bom corpo em todas as cenas, é quando foram apanhados na sua teia. Nessa altura, Polanski leva-nos para o quarto, para a cama e, eventualmente, para a mente de Carole. Fomos tão longe e estamos tão perto que, quando nos apercebemos da sua natureza psicótica, já não conseguimos fugir. Agarrou-nos, e vai rebentar a nossa cabecinha também, enquanto nos vai deixando ver o que se passa na sua. Espera, esperamos, que algo aconteça, que se suicide, que a polícia a prenda, que um trovão caia no prédio e tudo acabe. Polanski interrompe a loucura abruptamente, quando as alucinações se haviam já tornado inseparáveis da realidade, com um simples zoom como ponto final, que nada resolve, pouco revela, mas, de forma dissimulada, parece responder pela origem de tão enigmática personalidade.

Algo que sempre me impressionou muito em Repulsion é a gestão desse silêncio da solidão, que apenas os mestres decidem e conseguem tornar num veículo de enredo no cinema. Muito à semelhança do trabalho de, por exemplo, Ingmar Bergman (que, apropriadamente, tem um grande trabalho intitulado apenas Silêncio), Polanski aponta a câmara, põe os atores nos seus lugares e deixa que o movimento combinado de todos os elementos transmita a essência de cada sequência. A fluidez da imagem, a fotografia perfeita, os takes longos e os ângulos invulgares, elevam este filme a um patamar de excelência e inovação técnica que é único nos anos 60.

9/10

domingo, 18 de outubro de 2015

Crisis (Ingmar Bergman, 1946)

Ah, Ingmar Bergman… O expoente máximo do cinema intelectual e o mais aborrecido dos autores concentrados na mesma pessoa, se considerarmos as opiniões dos seus admiradores e detratores lado a lado. Em nome da objectividade, talvez devesse moderar estas divergências e caminhar para um meio termo, mas sinceramente, o sueco realizou 40 filmes ao longo de 38 anos, todos eles, independentemente do género e da idade, com uma ímpar compreensão das relações humanas em todas as vertentes possíveis e imaginárias, por isso confesso a minha dificuldade em aceitar qualquer menosprezo que lhe seja dirigido.

Crisis é a antecâmara dos conflitos pessoais, das interpretações com apontamentos teatrais e dos tons escuros regulados pela mais perfeita iluminação que são transversais a Summer With Monika, Through A Glass Darkly ou Face To Face, mesmo depois da passagem para a policromia. Primeiro cenário: uma vila pacata no interior do país, onde mora Ingeborg, uma mulher estéril e solteira, com Nelly, a filha adoptada de 18 anos que é a sua razão de viver. Certo dia, chega Jessie, a mãe biológica, surpreendentemente equilibrada e disposta a reconstruir uma espécie de família a três na grande cidade, junto ao namorado actor, Jack.

Já nesta estreia é admirável a compreensão crescente que se vai tendo da psicologia de cada personagem, da preocupação de Ingeborg em manter Nelly por perto enquanto esconde a deterioração da sua saúde, das ilusões e desilusões próprias da juventude da rapariga ou da vacuidade letal que Jack cultiva, no fundo do estado de espírito e das amarras que os (as) prendem a todos(as). Bergman tece uma rede de intenções, mal-entendidos, desejos e frustrações com um detalhe notável. Estas pessoas no ecrã têm vida, a eloquência do argumento e o controlo da mise-en-scène, ainda maiores nas décadas seguintes, clarificam e amplificam o nosso apego às suas histórias.

Quanto a problemas específicos da menor maturidade evidente em Crisis contam-se alguns: a narração é dispensável, dá-se relevo ao isolamento da vila ser apenas contrariado pelo autocarro que lá passa diariamente, no entanto as viagens que vão surgindo fazem-se por via férrea e Ulf parece demasiado velho e dessintonizado da vivacidade de Nelly para se assumir como o par adequado. Não é o filme mais evoluído a nível visual, o que não impede o baile de caridade e a noite no salão de ficarem na memória. Nem o amor nem o desprezo por Bergman passam por aqui; este é um pequeno e adorável primeiro filme, mas o início de tanto mais.

8/10

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O Tempo de Coppola

Exprimir uma noção temporal numa forma de arte talvez nunca tenha sido tão desafiante como é no cinema, porque é possível capturar a sua passagem através de movimento visível. Vários realizadores e críticos dedicaram extensas porções dos seus trabalhos a esmiuçar a temporalidade. Andrei Tarkovsky escreveu que “a principal motivação do cinéfilo é a procura do tempo: do tempo perdido, do tempo negligenciado, do tempo a reencontrar.” Se é verdade que cada indivíduo tem a sua própria sensibilidade no que respeita a esta dimensão, torna-se uma luta estabelecer um compromisso entre o inter-relacionamento de momentos e um ritmo que os sirva, cativando a atenção do maior número de pessoas possível.

Francis Ford Coppola tem, com subtil consistência, tentado oferecer significado à narrativa cinemática através da exploração da passagem do tempo como é compreendida em diferentes momentos da vida, para além de adaptar o seu estilo visual para encontrar o tom correto de cada história. Os seus filmes são regularmente sínteses de preocupações relacionadas com a idade. Recorrendo a uma linearidade precisa, propõe-nos constantemente para análise frases, estados de espírito e memórias que, uma e outra vez, ressoam no passado ou no futuro das personagens (que estão sempre condenadas a uma contemporaneidade específica). Coppola privilegia um trabalho de câmara estático e usa o espaço e a montagem de forma a criar a ilusão de comprimir ou esticar o tempo para adicionar suspense. Cada momento vale por si, nunca é um movimento de transição entre atos, mas um presente com implicações e expectativas.

Em The Godfather, o realizador explorou essa linearidade temporal em várias ocasiões com ações simultâneas, mostradas em paralelo e não em sucessão, definindo, no primeiro capítulo, os dilemas morais de Michael e a dualidade dos conceitos de família que herda e que obrigam ao batizado da filha e à manutenção de estatuto através de homicídios em cadeia (“do you renounce Satan?”), ou, no segundo capítulo, as dissemelhanças entre pai e filho, com a mesma idade, a viver em épocas distintas, implicando uma circularidade de estatuto e uma descontinuidade de decisões na estrutura. Em Jack, o tempo adquire duas dimensões em si mesmo à medida que o enredo evolui numa cronologia normal e Robin Williams envelhece quatro vezes mais rápido. Dracula não é mais do que um amor repetido ad eternum por um imortal. Com Youth Without Youth, explorou uma personagem que se torna mais nova inexplicavelmente e pode, com isso, continuar o seu trabalho, que o leva a civilizações cada vez mais antigas, até à origem da linguagem.

Os caprichos do tempo e as técnicas cinemáticas nunca deixaram de estar em questão na carreira de Coppola, o que faz dele um dos mais genuínos intelectuais do cinema. O seu propósito não é um total realismo, nem uma fragmentação altamente estilizada, simplesmente a gestão impercetível do âmago emocional de cada cena para ficarem como que suspensas no tempo. Ao manipular a mise-en-scène e a pós-produção, ao acentuar estas obsessões com personagens conscientes da brevidade ou da infinidade das suas vidas, eleva a nossa perceção da passagem do tempo a um patamar comum, onde somos confrontados com o valor do presente.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

El Orfanato (Juan Antonio Bayona, 2007)

Uma das fitas mais faladas da edição de 2008 do Fantasporto, El Orfanato tem o mérito de cumprir com aquilo a que se propõe: cativar a atenção do início ao fim, envolvendo quem o vê num mistério com contornos muito pessoais para a personagem principal. Apesar do nome de Guillermo Del Toro aparecer nos créditos iniciais, a sua contribuição resume-se ao trabalho de produção, estando a realização a cargo de Juan Antonio Bayona, na altura um singelo caloiro espanhol, agora talvez mais conhecido por ter o drama The Impossible (2012) no currículo.

Pela sinopse – para quem está a zero sobre a história, centra-se numa mulher que compra o orfanato onde passou a sua infância, muda-se para lá com a família, e acaba por desenterrar segredos do passado, ao mesmo tempo que o seu filho desaparece – talvez fique a sensação de que se está a pisar terras já exploradas; The Haunting (Robert Wise, 1963), The Others (Alejandro Amenábar, 2001), e, para quem se lembrar, Saint Ange (Pascal Laugier, 2004), podem saltar à memória, mas garanto que nem por isso El Orfanato é uma experiência menos aprazível ou surpreendente.

Todos os desenvolvimentos do presente de Laura são um reflexo de várias fases da sua vida, pelo que, mais do que um puzzle em resolução, com meia dúzia de sustos pelo meio, o enredo evoca memórias difíceis e constrói uma espiral de degradação psicológica desta mulher, cabendo ao espetador tentar perceber se isso é irreversível ou não e até que ponto esse estado alimenta a sua imaginação. Belén Rueda, cara conhecida de Mar Adentro (Alejandro Amenábar, 2004), consegue exprimir a fragilidade de Laura de forma convincente e carrega a ação de forma admirável.

Nota-se muito cuidado em fundir toques modernos com uma história mais tradicional, vê-se o aparecimento de assistentes sociais, sabemos que uma criança tem VIH e, por outro lado, temos aquele toque gótico característico de narrativas que revolvem em casas antigas e enormes. Não há muito gore, mas há um nervosismo miudinho constante, por vezes quase impercetível, que dá grande atmosfera. Há classe, que é algo que falta no terror que é feito hoje em dia e que é tão apreciado nos clássicos de Roman Polanski, em The Omen (Richard Donner, 1976) ou Don't Look Now (Nicolas Roeg, 1973). A banda sonora é apropriada e memorável. Tudo somado, uma boa surpresa, que faz da sobriedade, pormenor e ambiguidade as suas palavras-chave.

8/10

domingo, 27 de setembro de 2015

Stanley Kubrick e o Close-up Frontal

2001 A Space Odyssey (1968)

2001 A Space Odyssey (1968)

A Clockwork Orange (1971)

The Shining (1980)

Full Metal Jacket (1987)

Eyes Wide Shut (1999)

Eyes Wide Shut (1999)

Eyes Wide Shut (1999)


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Black Sunday (Mario Bava, 1960)

É verdade que Mario Bava já tinha, pela altura em que lhe foi oferecida a oportunidade de realizar o seu primeiro filme, muito conhecimento de causa na matéria, depois de anos como director de fotografia em filmes pouco conhecidos de todos os géneros e feitios e de ter ajudado a completar alguns sem receber crédito por isso, incluindo os de terror que Riccardo Freda aceitava e depois abandonava a meio da produção. Todavia, não deixa de ser surpreendente a maturidade estilística que envolve este Black Sunday, baseado num conto gótico que não anda muito longe do tipo de folclore que originou Drácula, com uma atmosfera soturna ao extremo.

A história passa-se na Moldávia e começa com uma belíssima e violenta sequência na qual uma bruxa, Asa Vajda, e o seu marido, de inclinações satânicas, são condenados à morte por imolação pelo irmão dela e a inquisição da qual faz parte, mas o casal não arde na fogueira sem antes lançar uma maldição sobre as gerações vindouras da família que os atraiçoou desta forma e, logo de seguida, lhes ser cravada uma demoníaca máscara metálica na cara, deixando-os com algumas rugas para a posterioridade. Duzentos anos depois, o experiente médico Kruvajan e o seu assistente Andre passam pela região e, imprudentemente, despertam a maldição ao visitar o túmulo em ruínas de Asa.

O forasteiro mais jovem apaixona-se imediatamente por Katia, a herdeira da fortuna dos Vajda, que parece uma cópia a papel químico da sua antepassada adoradora do diabo e de Dimmu Borgir (especulo eu). Como censurá-lo? A actriz é Barbara Steele, que a partir deste momento passou a ser a rainha do cinema de terror. Alta, de cabelo comprido preto e olhar perigoso, a inglesa acumulou em Black Sunday dois papéis distintos mas intimamente conectados. Aos poucos, os eventos estranhos vão-se sucedendo e qual deles o mais memorável. O pai de Katia tem uma premonição e vê a tal máscara no fundo do chá, os olhos do cadáver de Asa borbulham e regeneram-se, Kruvajan é conduzido por um morto de carruagem… são imagens inesquecíveis.

A criatividade italiana não deixa de surpreender. Acho que não é preciso relembrar que em 1960 saíram também L’Avventura ou La Dolce Vita. Estes filmes nada têm a ver com Black Sunday, claro, porém menciono-os para reforçar o incrível alcance da produção transalpina nesta altura, que é das minhas preferidas na cronologia e geografia do cinema. Macabra q.b., impossivelmente atmosférica, a estreia de Bava teve um impacto enorme, tendo-a Tim Burton ou Francis Ford Coppola mencionado como uma influência nos seus trabalhos, e chegou a ser banida no Reino Unido. Tudo razões que contribuem para a mística que eleva Black Sunday a um patamar apenas reservado aos grandes clássicos.

9/10

domingo, 6 de setembro de 2015

Fifty Shades Of Grey (Sam Taylor-Johnson, 2015)

Estima-se que E.L. James, já tenha vendido mais livros do que Roald Dahl, Lewis Carroll, Albert Camus, Thomas Mann, Ernst Hemingway, George Orwell, e até, imagine-se, Stephanie Meyer, a dona de casa americana elevada a portentosa referência da literatura mundial que criou a saga Twilight, fazendo mulheres de todas as idades suspirar em uníssono por vampiros fluorescentes, e inspirando, nada mais, nada menos, do que uma dona de casa inglesa que haveria de começar por escrever fan fiction na internet baseada nesse universo e acabaria a assinar um fenómeno de seu nome Fifty Shades Of Grey, fazendo mulheres de todas as idades verter líquidos variados perante a ideia de uma sessão de paulada sadomasoquista.

Como todos os bestsellers recentes, teve direito a sequelas e a contrato chorudo para ser autorizada uma versão cinematográfica. Ei-la. Para quem é demasiado conservador para consumir pornografia, para quem é demasiado preguiçoso para procurar os clássicos thrillers eróticos que já percorreram caminhos semelhantes como Nine And A Half Weeks ou Basic Instinct, para quem gosta de seguir o que está na moda sem questionar a sua validade, para quem tem, pura e simplesmente, curiosidade, seja por que razão for, mas não se queira subjugar ao martírio de ler quinhentas páginas de algo que se vê a milhas que tem valor artístico questionável, Sam Taylor-Johnson fez o trabalho por vossemecês.

E, devo dizer, não é tão mau como esperava. “Whaaaat?!”, dizeis em coro. Calma, ainda é bastante terrível. Só que, em nome da cinefilia inveterada e da imparcialidade catóptrica, dei o corpo às balas em 2008 e vi o primeiro filme do supracitado Twilight, decisão que, em retrospetiva, foi das piores que tomei na vida, talvez apenas a par daquela vez em que me lembrei de subir por um poste à varanda do primeiro andar da minha escola primária e acabei por cair, rachando a cabeça no cimento do recreio. Para algo que nunca existiria se não fosse pela inspiração advinda dos balbucios trocados entre um pedófilo de 100 anos, uma adolescente retardada e um lobisomem com abdominais, o horror anunciava-se, qual tempestade no horizonte.

Alguém aqui soube o que queria (talvez a realizadora, quero eu acreditar, pelo talento demonstrado com a estreia, Nowhere Boy, e porque não quero dar esse mérito nem à escritora, com quem não simpatizo particularmente, nem aos argumentistas que aleatoriamente foram sendo contratados para escrever fragmentos de diálogos): há muitas etapas a queimar para se transformar uma universitária virgem numa concubina aquiescente e estas sucedem-se com minúcia. O mundo que rodeia Anastacia Steele e Christian Grey é ruído de fundo quase desde o início, pelo que o chamariz pode ser a promessa de sexo à bruta, mas o magnetismo está na proximidade que temos às experiências que levam até esse ponto.

A ideia de um namorado que aparece em todo o lado como se isso fosse enternecedor ao invés de assustador é um ponto de ligação evidente com Twilight. O resultado é que é diferente, porque aqui há uma série de avanços e recuos que ajudam a suportar a atração, a passagem de certos limites, esticando a corda até rebentar. Quando Bella é salva de um atropelamento por Edward, a dinâmica do futuro casal fica definida, um namorico banal tratado com um dramatismo tão pouco convincente como muito hilariante. Quando Anastacia decide fazer à amiga adoentada o favor de lhe entrevistar Christian para o jornal da universidade, num primeiro encontro desastroso, isso é apenas a ponta do iceberg.

Fifty Shades Of Grey talvez seja um alvo fácil por ser um fenómeno de massas com pouco conteúdo e um compêndio de certas fantasias femininas, desde os mais estranhos fetiches sexuais, a algo mais típico e aparentemente inofensivo – encontrar um príncipe encantado que fique perdidinho de amores e que seja feio e pobre. Haha, claro que não, tem também de ser o homem mais bem-parecido do mundo e ser rico como o carago, nem sendo sequer necessário saber de onde lhe vêm os dólares (a sério, os pais de Christian ainda estão vivos e não ostentam tantos sinais exteriores de riqueza, por isso não é o herdeiro de um grande império, não parece ser da máfia… o que se passa mesmo na Grey Enterprises Holdings?).

Isto é a grande crítica que tenho de fazer à construção das personagens, que é o real problema deste filme. Quando a autora, a realizadora ou a atriz Dakota Johnson falam em público numa história que devolve poder às mulheres têm razão, só que duvido que se apercebam da origem distorcida dessa força. Anastacia nunca entraria em jogos sadomasoquistas se não fosse pelas atenuantes de receber um MacBook novo, um carro novo, viagens de avião pagas, etc. No fundo, a sua relação com Christian só é possível porque ele parece um modelo da Hugo Boss e materialmente há compensação, senão o rapaz não passava de um psicopata com um passado de graves crimes sofridos enquanto menor.

Apesar de submissa no sexo, ela torna-se dominante na relação. Christian é frágil e por isso procura mulheres que lhe agradem, enche-as de mimos, sentindo-se um machão quando consegue prendê-las na sua masmorra e enfiar-lhes uma parafernália de brinquedos pelos orifícios. Com Anastacia não é igual, realmente. Porquê? Porque ela é muito mais forte do que ele e, provavelmente, do que as dezenas de mulheres que usufruíram da mesma atenção anteriormente. Isto vira o feitiço contra o feiticeiro de tal forma que Christian julga estar apaixonado. A desorientação é tanta que o intimidante homem de negócios é abandonado à porta do elevador com um “stop” categórico, uma ordem prontamente obedecida, qual escola de treino de cães.

Bem distante de certas alegações de antifeminismo ou de promover violência contra mulheres. Antes pelo contrário, Anastacia usufrui da fortuna do namorado e acaba por dar outra machadada emocional numa pessoa já bastante perturbada. O resto é pinners, ninguém obriga ninguém a nada, as premissas eram explícitas desde o início. Não estou a querer dizer que ela é intencionalmente manipuladora. Estou a querer dizer que o modernismo da história é assente em pressupostos errados e as críticas idem. Isto para nem falar de Mrs. Grey, interpretada pela terrível Marcia Gay Harden, uma suposta santa e “galinha” adorável, apesar de a sua incompetência maternal ter sido tanta que nunca deu fé que o filho fora abusado anos a fio por uma amiga.

Contudo, os melhores filmes de amor estão repletos de desequilíbrios, de segredos que enquanto espetadores partilhamos com as personagens (que não podem ser partilhados com ninguém do seu mundo ficcionado), sentimentos de culpa, paixões assolapadas… Os casais discutem porque têm ideias diferentes, origens diferentes, personalidades diferentes e o fim anuncia-se, independentemente do esforço de ambos os lados para o contrariar. É triste chegar à conclusão que não se pode continuar a estar com uma pessoa que amamos, porque isso faz pior aos dois do que seguir em frente. Descontando as mensagens confusas, os artifícios XXX e o consumismo séc. XXI, até resta um romance bem construído. É preciso descontar muito, mas sim.

4/10

domingo, 23 de agosto de 2015

Adventureland (Greg Mottola, 2009)

Depois de ter realizado um argumento de um dos mais conhecidos atores cómicos americanos da atualidade (Seth Rogen) em 2007 com Superbad, uma genial comédia de situação, Greg Mottola volta agora com um filme totalmente da sua autoria, mais indie e nostálgico, passado nos anos 80, sobre os amores e desamores de Verão de adolescentes empregados num parque temático cheio de personagens sui generis.

Com laivos de Sofia Coppola, mas sem o sexto sentido estético desta, Adventureland consegue, ainda assim, captar um ambiente muito próprio, num período muito específico, com charme e graça, equilibrando bem as gargalhadas e as lágrimas, em parte devido: 1) à abordagem relaxada e honesta aos pequenos dilemas e devaneios próprios da idade, desde o tabu da virgindade à convivência com as drogas e o álcool; 2) à escolha acertada dos atores principais, Kristen Stewart (Em), Jesse Eisenberg (James) e Martin Starr (Joel), cada um com abordagens diferentes à sua arte e à sua personagem.

Os momentos mais desvairados são quase exclusivamente assegurados por um conhecido de infância de James e os dois dementes responsáveis pelo parque (Bill Hader e Kristen Wiig), mas os maiores interesses de Mottola são mesmo a intimidade que se vai criando dentro e fora da Adventureland entre James e Em, ambos a tentar amealhar dinheiro suficiente para poderem financiar os seus primeiros anos em universidades de Nova Iorque, onde começarão as aulas em breve, e os erros que cometem, na sua imaturidade.

O filme adquire uma dimensão dolente quando nos é dado a ver o ambiente familiar de Em, cujo pai viúvo se deixou sacar por uma mulher vil e déspota, razão pela qual a miúda tenta passar o máximo de tempo possível fora de casa. Apesar dos sentimentos que os unem, ela não se compromete com James, e mantém, às escondidas, uma relação com um homem casado (Ryan Reynolds), mecânico no parque. Em é mais frágil do quer dar a parecer, mas a forma como arrasta este assunto muito depois de beijar James e de perceber que pode ter uma relação estável com ele parece exagerada.

Não ajuda que Ryan Reynolds seja um dos mais insípidos atores que andam por aí e em cada cena que aparece o filme perde o rumo. Mas para um filme que navega algures entre American Pie (Paul Weitz, 1999) e All The Real Girls (David Gordon Green, 2003), entre o humor, por vezes cáustico, e as extravagâncias do primeiro e a naturalidade e delicadeza do segundo, podia ser bem pior.

7/10

sábado, 15 de agosto de 2015

Friday the 13th (Sean S. Cunningham, 1980)

Há superstições para tudo. Algumas têm a sua origem em crenças antigas, amiúde infundadas, que se transmitiram de geração em geração sem que alguém saiba bem porquê, lembro-me dos pés de coelho. Outras parecem mais medidas de segurança, passar por baixo de uma escada pode não ser uma boa ideia, corre-se o risco de levar na cabeça com alguém com pouca noção de equilíbrio. Cruzar caminho com um gato preto faz sentido, ou qualquer gato, já que estou nesta temática, porque toda a gente sabe que são criaturas traiçoeiras, enviadas para a Terra pelo Diabo. Mas e os espelhos? Bater na madeira? Ou, mais desconcertante, o medo de que o calendário e a matemática estejam a conspirar em conjunto para nos prejudicar num dia tão específico e aleatório como as sextas-feiras treze?

Claro que tudo isto é terreno fértil para o cinema de terror. Depois do sucesso de Halloween em 1978, os assassinos em série ganharam o seu próprio subgénero, os filmes slasher, e multiplicaram-se ao longo dos anos 80. Este Friday The 13th foi uma das primeiras tentativas de replicar a fórmula. O dinheiro choveu de todos os lados, as sequelas não demoraram muito a aparecer, e, mais tarde, os remakes. Que grandes atributos lhe podemos atribuir? Um ambiente de cortar à faca? Uma narrativa aliciante? Inovações tecnológicas? Um psicopata memorável? A respota é “nope” a tudo, pelo menos neste primeiro tomo. Aquela lentidão e estranheza ubíqua que se entranham quando se vê o filme de John Carpenter não encontram rival aqui, o cenário do lago idílico é muito mais suspeito em Let’s Scare Jessica To Death, a originalidade da história de A Nightmare On Elm Street está a milhas, não se pode esperar grandes planos num low budget destes e o mítico Jason Voorhees marca presença num total de 0,0035 segundos e com um aspeto muito diferente do brutamontes com máscara de ski a que estamos habituados.

Portanto, uma desilusão a vários níveis. Trinta e tal anos antes, o Camp Crystal Lake era um paraíso para os pais que gostam de se livrar das crianças e adolescentes quando entram de férias no Verão. Isto até ao ano em que dois monitores foram assassinados perante freeze frames patéticos e o tempo passa até algum iluminado se lembrar de desafiar o destino e o reabrir. Logo na primeira noite, enquanto os novos monitores ainda estão a conhecer os cantos à casa e aos corpos uns dos outros, alguém os persegue, como que por vingança. Claro que com tantas hormonas à solta e sangue a espirrar, Friday The 13th cativou audiências mais jovens. A traqueia do Kevin Bacon é trespassada com uma seta, o que é espetacular. Nada contra o Kevin Bacon. Já agora, como é que o Kevin Bacon atende uma chamada? A dizer “tou-cin-ho?”.

4/10

sábado, 1 de agosto de 2015

Mission: Impossible - Rogue Nation (Christopher McQuarrie, 2015)

O realismo nunca foi a maior preocupação no universo Mission: Impossible, nem na série original, nem na sua tradução cinemática, como os planos elaborados, as máscaras de látex, as one-liners ou a presença dos Limp Bizkit na banda-sonora sempre fizeram questão de sublinhar, o que não quer dizer que não há um nível de discrição mínimo que seja exigível, para nos fazer crer que, com mais ou menos explosões, talvez até fosse possível existir uma agência de espionagem especializada em situações de alta complexidade e que estivesse constantemente a correr o risco de ser exposta, como a Impossible Missions Force, ou IMF.

Claro que tal aura se torna difícil de manter quando, ao quarto filme, o Kremlin é obliterado, o Burj Khalifa é escalado e a Transamerica Pyramid é trespassada por uma bomba nuclear, colocando Ethan Hunt (Tom Cruise) no patamar de alguns super-heróis da Marvel e DC Comics no que diz respeito à destruição de edifícios icónicos. Este franchise tenta equilibrar alguma extravagância com alguma sobriedade e, sob esta perspectiva, o primeiro filme tem-se mantido inigualado, ao qual a única crítica que se pode fazer é a falta de consideração pela personagem principal na televisão, Jim Phelps, que se revela um traidor.

Rogue Nation percebe os fatores que tem de balançar. O argumento não cai no erro de tornar a história demasiado pessoal, como aconteceu em 2000 e 2006, encontrando novos elementos que a engrandecem. Como se sabe, a cena em que o líder da equipa recebe uma gravação que descreve a missão e acaba com “esta mensagem vai-se autodestruir em cinco segundos” é obrigatória e raramente adulterada. Essa regra é quebrada aqui, tal é a influência do Sindicato, uma organização composta por antigos agentes secretos de várias nacionalidades, como Solomon Lane (um Sean Harris sibilino).

A escala absurda de Ghost Protocol é mesmo realçada pelo diretor da CIA Alan Hunley (Alec Baldwin) para suportar a ideia de que não faz sentido manter uma unidade tão rebelde como a IMF, o que manda Ethan Hunt para a clandestinidade à procura de criminosos que podem não passar de um rumor. O seu chefe William Brandt (Jeremy Renner) chega a duvidar da sanidade do agente, assim como o espectador, o que é um elemento interessante de ver, porque éramos sempre levados a desprezar o aparente acaso dos métodos de Hunt. O carisma de Tom Cruise e de Simon Pegg (estilos completamente diferentes) vem ao de cima.

A atriz Rebecca Ferguson agarrou o melhor papel da sua carreira até agora e também o melhor papel feminino dos filmes feitos até agora. Não é estritamente colega, como Emmanuelle Béart e Paula Patton foram, nem “damzel in distress”, como Thandie Newton e Michelle Monaghan foram, é uma espia com lealdade questionável, objetivos em conflito com os da IMF, fria e bem treinada. Robert Elswit na fotografia é outro destaque. A forma como a cena na ópera de Viena se desenrola é de pura mestria visual, em especial nos ângulos utilizados. Rogue Nation sobe assim automaticamente para segundo no ranking Mission: Impossible.

8/10

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Ante-estreia de Mission Impossible: Rogue Nation

Dois dias antes da ante-estreia nos EUA do novo filme com Tom Cruise como o incontornável Ethan Hunt, aconteceu a ante-estreia em Leça da Palmeira e claro que, tendo recebido convite, tive de aproveitar.

Para além de a espectacular sala IMAX do MarShopping ser um deleite para qualquer cinéfilo, este novo tomo do Mission Impossible é talvez o mais bem escrito desde o primeiro e o mais bem filmado de todos (Robert Elswit na fotografia, há que lembrar).


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Europa Europa (Agnieszka Holland, 1990)

A Segunda Guerra Mundial sempre foi e sempre será terreno fértil para o cinema; ao longo dos anos, já saíram filmes sobre todas as maiores batalhas, sobre todos os mais influentes protagonistas, de todas as perspectivas, com mais ou menos realismo, com mais foco sobre os líderes, sobre os soldados ou sobre os inocentes. Ainda assim, as surpresas surgem quando menos se espera e, mesmo não tendo propriamente passado despercebido na altura de estreia, como atesta a nomeação para o Óscar de Melhor Argumento Adaptado, este Europa Europa é uma agradável descoberta.

Em questão, uma história de sobrevivência inverosímil mas verídica. Solomon Perel, judeu alemão, muda-se para a Polónia com a família quando o antissemitismo nazi começa a envenenar o dia-a-dia, ainda antes do conflito romper. Quando Hitler manda as suas tropas avançar rapidamente para leste, o rapaz e um dos irmãos mais velhos separam-se dos pais, por vontade destes, em direção à Rússia, para lá procurarem refúgio antecipadamente. O problema é que também eles perdem, no meio de tantos migrantes, e Solomon acaba sozinho num orfanato soviético.

Dois anos passam, tempo suficiente para absorver a cultura e a língua, adorar Estaline e esquecer Deus. Numa cena com iguais porções de comédia e incredulidade, outro rapaz declara-se, em plena sessão de leitura sobre a glória do comunismo, crente. Uma partidária febril desafia-o então a rezar por uma chuva de rebuçados na cantina. Relutante, ele cede e nada acontece. A miúda diz-lhe para fazer o mesmo, desta vez chamando pelo seu líder. De repente, de uma grelha no tecto, alguém escondido num sótão deixa cair dezenas de doces, para gáudio de todos os alunos. O culto de personalidade no expoente máximo.

Contudo, a guerra ainda tem muito para dar. Os alemães avançam, Solomon é preso e tem de se habituar a mentir para continuar vivo. Bilingue, é aceite num pelotão da Wehrmacht por ser um óptimo tradutor. Este nível de inteligência só é possível pertencendo à raça ariana, certamente, e a sua identidade raramente é questionada, tal a sua importância. O jovem sempre desejara ser actor, mas nunca imaginara que ser outra pessoa custasse tanto… e o pior nem é esconder a circuncisão na linha da frente dos companheiros de batalha. O maior problema é quando um coronel o adopta e envia para um internato no Reich.

Europa Europa é constituído por episódios de uma ironia extrema – Solomon tem a sorte e a habilidade de escapar da morte muitas vezes e de formas incríveis. Só que e a sua família? E os outros judeus que habitavam na Alemanha e na Polónia, por exemplo? Julie Delpy aparece, com 20 anos, a fazer de adolescente iludida e com uma dobragem horrível, e Marco Hofschneider tem o papel de uma carreira. A acompanhar este grande argumento, o melhor tema de Zbigniew Preisner, compositor frequente de Krzysztof Kieslowski. Praticamente só boas razões para recordar este filme.

8/10

domingo, 5 de julho de 2015

Coherence (James Ward Byrkit, 2013)

Normalmente associa-se a ficção científica a viagens intergalácticas, fatos de treino futuristas, inovações tecnológicas e, de uma forma geral, efeitos especiais tão pesados que fariam um computador normal engasgar-se todo durante a fase de produção. Contudo, não precisa de ser sempre assim, afinal as maiores descobertas raras vezes extravasam das paredes limítrofes de laboratórios, salas de reuniões, escritórios, bibliotecas, universidades ou centros de pesquisa. Um filme como Coherence, que se desenrola quase na totalidade dentro da mesma casa, talvez esteja mais próximo da essência do género do que se possa assumir à partida.

Quatro casais, oito amigos, reunidos num jantar caseiro e informal, ao mesmo tempo que um cometa passa ao largo da Terra, deixando um rasto luminoso bem visível. Nenhum deles tem conhecimento suficiente para explicar o fenómeno com precisão, muito menos os eventos bizarros que se irão suceder e que podem (ou não) ter alguma ligação com isso. O início parece dum filme indie qualquer sobre amizade e com banda sonora da Vodafone FM, onde as relações entre as personagens são estabelecidas e há potencial para conflitos, trocas e baldrocas, mas quando o grupo vai à rua observar o céu e as luzes de todo o bairro vão abaixo, é certo que o rumo vai mudar bruscamente.

Hugh é advogado, mas tem um irmão cientista com quem prometera manter o contacto nesta noite. Encontra um livro no carro que lhe ia levar sobre física quântica, onde os oito se deparam com algumas teorias sobre a existência de variações duma mesma realidade. Poderão estas, em determinadas circunstâncias, tocar-se? A urgência em obter respostas leva Hugh a dirigir-se à única casa do quarteirão com electricidade. Esta decisão vai acarretar uma série de consequências imprevistas, nomeadamente encontrarem uma caixa com fotografias de todos e um objeto aleatório, receberem cópias de notas escritas por eles e aperceberem-se da existência duma zona negra à volta da casa.

Emily destaca-se pela parcimónia, tentando resolver os problemas que se vão apresentando com cabeça fria, apesar de o namorado Kevin estar prestes a partir para o estrangeiro e ela não saber se pode ou não ir juntamente, e da presença de Laurie, a ex que agora está com outro elemento do grupo, Amir. Emily deverá ser a última a tomar alguma atitude condenável. Se isso acontecer, é melhor nem imaginar o futuro dos outros. Coherence destaca-se pela certeza com que desenvolve uma história tão simples baseada em conceitos da física tão complexos. Com poucos meios e muito improviso, especialmente da parte dos atores, está aqui um filme tenso, inteligente e cativante. Ficção científica reduzida ao essencial.

8/10

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Electroma (Thomas Bangalter, Guy-Manuel de Homem-Christo, 2006)

A música electrónica dos Daft Punk sempre esteve envolvida por uma estética robótica que ultrapassa os ritmos repetitivos e as letras tecnológicas e se estende aos uniformes pretos e capacetes espaciais que o duo enverga onde quer que vá, como se tivessem acabado de sair da fábrica e não de casa ou dum camarim. Quase como que lembrando os fãs de que estão pessoas por baixo de todo o aparato, ou talvez realçando a crescente capacidade de improviso, decidiram batizar o seu terceiro álbum de Human After All. Essa curiosa, talvez irónica, chamada de atenção é o mote de Electroma, filme realizado pelos mesmos nessa altura, que começou como uma extensão de ideias para videoclips.

Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter nem sequer aparecem em frente das câmaras, continuando assim sem revelar os seus rostos, antes dois actores com o disfarce completo e porte físico semelhante… cujas identidades também não se tornam expressamente conhecidas em qualquer segundo do filme. Aliás, há um momento em que os capacetes lhes saem das cabeças e (suspense) temos a continuação da ilusão de que os protagonistas não passam de obras de engenharia. Conclusão, os artistas são indivíduos que se escondem atrás de personagens robôs que desejam ser indivíduos de carne e osso.

Electroma é compreensivelmente estranho, fragmentado e musical. Logo de início, o duo aparece do nada e começa a guiar pelo deserto até uma cidade como muitas outras que conhecemos do cinema norte-americano, com a particularidade de todos os habitantes envergarem os tais capacetes prateados ou dourados. Os autómatos dirigem-se a uma instalação onde se submetem a uma operação estética, recebendo caras de látex, que passam a exibir orgulhosamente na rua. Contudo, o sol deforma-as e a reacção de quem se cruza com eles é de revolta, escorraçando-os dali para fora.

Segue-se uma longa caminhada pelas areias escaldantes da região, onde sentimos a sua aguda crise de identidade. Por muito que tentem, nunca serão humanos e nunca terão o respeito dos que os rodeiam por tentarem. Genial a analogia visual entre a forma das dunas e uma vagina. Não passa de uma miragem. Lento, com uma história mínima e com recurso a uma banda-sonora de grandes artistas, muitos dos quais nunca tiveram a popularidade dos Daft Punk apesar do talento óbvio, como Jackson C. Frank, o filme entranha-se e fica na memória. Tal como o álbum Human After All e ainda mais Random Access Memories, é interessante como os laivos de experimentalismo do duo podem ser tão acessíveis.

8/10

domingo, 21 de junho de 2015

La Piscine (Jacques Deray, 1969)

A qualidade cinemática das piscinas é inegável. O azul claro do fundo e a ondulação tênue da água podem transmitir calma ou incerteza, consoante o contexto, e, num filme como La Piscine, onde actores mais-que-perfeitos como Alain Delon e Romy Schneider passam horas a mergulhar e a nadar enquanto sopra uma brisa veranil perto de Saint-Tropez, condicionar a nossa percepção da passagem do tempo pela repetição de um simples movimento. Como o filósofo Gilles Deleuze teorizava, o movimento subordina o tempo no cinema quando a dinâmica das personagens ou objectos estão conectados pela montagem a um centro, que pode ser afectado por ou reflectir algo. Esse centro não precisa de ser um organismo, pode ser um espaço, como o apartamento que liga várias histórias em Vive L’Amour (Ming-Liang Tsai, 1994), nem sequer precisa de ser corpóreo, pode ser uma ideia, como o conceito da greve em Strike (Sergei Eisenstein, 1925). A existência de um centro à roda do qual a dinâmica das personagens ou objectos se relacionam deslinda padrões de acção-reacção e, daí, nasce o enredo.

E quantas vezes não vimos já esse espaço aquático confinado, que tanto serve para diversão, como para desporto, como pretexto para ver alguém em trajes menores, como até para matar alguém por afogamento, ser o centro das atenções? Realmente é o que acontece aqui, a piscina da mansão emprestada onde Jean-Paul e Marianne passam férias é presença activa ou passiva em quase todos os momentos, de início porque o jovem casal (nesta altura já não o eram fora da tela, mas continuavam a exibir uma química incrível, como se vê nos avanços e recuos, beijos e amassos quando ainda estão sozinhos), mais tarde por atrair a estadia do amigo Harry (Maurice Ronet) e da sua filha adolescente (Jane Birkin), e no fim por ser explorado o seu lado mais negro e alguém lá morrer numa noite que tinha condições para ser o mais pacífica possível, como as anteriores.

Tirando isso, pouco acontece. Ou seja, abraçamos a indolência com tanta satisfação quanto a que Jean-Paul e Marianne dedicam às suas férias, perdemo-nos a olhar para estes modelos, a apreciar a paisagem da Cote D’Azur, a desejar saltar para a piscina, que falhamos as intermitências desta união e que são logo apontadas quando ela nem hesita em convidar terceiros, que vêem claramente estragar o isolamento que ele estaria a congeminar. Este é um filme de crime, não fosse o realizador Jacques Deray um habitué do género, um pouco como Swimming Pool (François Ozon, 2003) só que menos meta, todavia é também um filme existencialista, como La Notte (Michelangelo Antonioni, 1961) só que em fase de namoro. Jean-Paul não é tão confiante quanto parece e Marianne duvida mais do futuro da relação do que diz. O crime surge bruscamente e não tem repercussões jurídicas. Cai, isso sim, como uma bomba entre os protagonistas, que terão de decidir se os dois anos de união são para continuar ou não passaram de um vazio (mal) dissimulado. E assim, a piscina desaparece – o seu trabalho está feito.

8/10

domingo, 14 de junho de 2015

The Cruise (Bennett Miller, 1998)

Em 1998 tive a felicidade de visitar Nova Iorque por um dia. Sublinho a palavra felicidade, pois não fazia parte do plano. Depois de uma semana de sonho na Flórida a explorar parques de diversões do tamanho de cidades e a atravessar pântanos de carro a ir e vir da costa, o que incluía o ocasional cruzamento com dezenas de alligators, chegou a hora de voltar a terras lusitanas. Por sorte ou azar, uma tempestade na Big Apple permitiu-nos aterrar no aeroporto de Newark, mas não a saída quase imediata para o outro lado do Atlântico, transformando uma escala de um par de horas numa permanência forçada para aí de 15 pares de horas. Com tanto tempo livre, como desperdiçar o acaso num terminal de aeroporto?

O trânsito caótico em direcção ao Lincoln Tunnel obrigou a algum desperdício de tempo, mas a satisfação de chegar à superfície e ter vislumbres dos prédios em tijolo burro perfeitamente alinhados numa imensa teia de ruas paralelas e dos arranha-céus, que me lembro de admirar num livro publicado pela Edinter sobre superestruturas desde que tenho memória, foi indescritível. À minha frente tive o Chrysler Building, o Empire State Building, o Madison Square Garden, o Flatiron Building, o World Trade Center, entre outros. Foi como conhecer alguém famoso e admirar-lhes a altura e o estilo, sem interacções desconfortáveis. Se não tivesse fotografias para comprovar, diria que tinha sonhado essas memórias do século passado.

De forma análoga, The Cruise torna a cidade tão palpável que quase se pode cheirar o asfalto e os cachorros quentes. Pergunto-me se terei passado pela verdadeira personagem que este documentário dá a descobrir. Timothy Levitch era, afinal, um guia de autocarro turístico. Quem sabe. Claro que não estamos a falar de um guia qualquer, mas sim de um poeta urbano que conhece todos os cantos da metrópole em que habita e que é o seu grande amor. “They're writing songs of love, but not for me / A lucky star's above, but not for me / With love to lead the way, I've found more clouds of gray than any Russian play can guarantee / La la la la / Although I can't dismiss the memory of her kiss / I guess she's not - she's not for me. ” Letra de George Gershwin, que viveu a dois quarteirões de distância. “Welcome to New York City.”

A carreira da GrayLine passa por Chinatown, Soho, Wall Street ou Central Park; tantos lugares que constroem a mística da ilha de Manhattan e sobre os quais Levitch improvisa longas e filosóficas elegias em cada círculo percorrido de microfone na mão com turistas de todo o mundo no andar de cima descapotável do autocarro. A excentricidade da sua trunfa gadelhuda, da eloquência das suas palavras e dos seus trejeitos tergiversantes contrastam com o minimalismo da sua existência, que passa por caminhadas solitárias sobre a Brooklyn Bridge, cravar residência junto de amigos e alternar um blazer horrível com outro cujo forro está roto. Uma figura colorida, uma vida a preto-e-branco.

É nesses tons que Bennett Miller filma e dificilmente as silhuetas das construções e a luz que as suas fachadas de vidro, pedra ou terracota reflectem podiam adquirir maior intemporalidade. Ao nível do início de Gentleman’s Agreement ou Manhattan. O realizador tem-se notabilizado pelas biografias de homens dedicados de corpo e alma a uma actividade específica, mais interessado no seu mindset do que em character development. Curiosamente, sem os artifícios da ficcionalização e orçamentos de milhões, a vivacidade é incomparavelmente superior. Tenho receio que os EUA tenham perdido esta espontaneidade e inocência com o 11 de Setembro, dilema inevitável quando chega a sequência final. Só lá indo… ou voltando. E voltando. E voltando…

9/10